Pagando a aposta pro meu primo. PARTE 65
É segunda-feira e acordo com o peito acelerado. A ansiedade me desperta antes mesmo do despertador. E tem motivo pra isso: hoje é meu primeiro dia na faculdade.
Tento seguir a rotina normalmente, mas minha cabeça tá longe. Enquanto me visto, tomo café e me preparo pra mais um dia de trabalho, tudo gira em torno dessa nova etapa que começa logo mais à noite.
Vou pro trabalho com a mente dividida entre os compromissos do agora e as expectativas do que vem depois. O dia parece arrastar. Uma semana antes, já deixei tudo pronto — comprei os materiais e paguei a primeira mensalidade. Não sei se é o que quero pra vida toda, mas por enquanto é um ponto de partida.
Quando enfim chega a hora, pego o ônibus em direção à faculdade.
O clima, diferente do que eu imaginava, não é de tensão. Na verdade, há uma certa leveza no ar. Talvez porque todo mundo ali esteja se sentindo mais ou menos como eu: inseguro, curioso, tentando parecer mais tranquilo do que realmente está.
Não tem aula de verdade, só apresentações, orientações básicas e aquele famoso discurso de boas-vindas sobre futuro e possibilidades. Tem trote também, mas nada traumático ou constrangedor. Foi mais um convite para incluir, acolher e quebrar o gelo do que qualquer outra coisa. Uma tinta no rosto, uma pergunta engraçada e muita risada pra desarmar o clima.
Aproveito pra explorar o campus. Resolvi andar pelos corredores e descobri a sala do meu curso, a biblioteca, a cantina, um pátio escondido atrás de uma ala antiga onde alguns veteranos fumavam e falavam alto, como se aquele território fosse deles por direito e vi até rostos com os quais talvez eu vá dividir os próximos anos. Cada conversa tímida, cada sorriso de canto, cada “Oi, qual seu curso?” parece plantar uma semente.
As salas se repetem, os professores mudam conforme o horário. Quando não estamos em sala, estamos no laboratório, lidando com planilhas e sistemas contábeis. Às vezes, parece que nossa vida cabe em duas colunas: débito e crédito.
E é na sala onde vou passar boa parte das minhas noites que uma mulher surge.
Ela entra com um andar firme, o corpo ereto, como quem já sabe o próprio valor. Negra, linda, com um cabelo Black poderoso que parece conversar com o ar. O perfume doce e elegante chega antes dela — e fica.
Ela observa o ambiente com calma, como quem lê tudo antes de se instalar. E mesmo com tantos lugares vagos, escolhe sentar ao meu lado. Sorri, diz um oi tranquilo, como se já soubesse que, dali em diante, a gente vai dividir muita coisa.
Aos poucos, a gente foi se conhecendo e criando uma amizade. O nome dela é Drielle e ela virou minha parceira de facul. É com ela que troco resumos, dou risada nos intervalos e compartilho o desespero quando não entendo uma matéria. Ela sempre chega com o caderno cheio de marcações coloridas, rabiscando fórmulas enquanto fala das novidades do dia.
Drielle até disse, um dia, enquanto a gente rabiscava fórmulas no meio de uma aula arrastada:
— Não sei explicar, mas desde o primeiro dia eu senti que a gente ia se dar bem.
Assim eu e Drielle fomos nos conhecendo e sem perceber, fomos construindo uma amizade daquelas que crescem sem fazer barulho.
Ela era solteira, filha única, morava com a mãe — o pai tinha falecido quando ela ainda era bem nova. Eu falei sobre minha orientação sexual, sobre morar com meus pais, sobre ser o caçula. Ela recebeu tudo com naturalidade, como se já soubesse e comentou, rindo:
— Quando te vi no primeiro dia, eu meio que percebi. Não por trejeito, viu? Mas tem um brilho... um negócio diferente em você.
Ela comentou que tinha percebido isso quando me viu pela primeira vez. Perguntei se eu era “pintosa”, mas ela riu e disse que não era isso.
Numa outra conversa, entre um lanche e a correria das aulas, comemos um salgado sentados no pátio da faculdade. E eu, não sei se por coragem ou distração, comentei que já tinha me envolvido num trisal.
Ela travou na hora.
— Num trisal? Como assim, trisal mesmo? Tipo... três pessoas juntos? Namorando?
Assenti, rindo da cara de espanto dela.
— E funcionava?
— Sim… super!
Ela arregalou os olhos e disse, já num tom divertido:
— Menino, eu não dou conta nem de um! Imagina de dois? Deus me livre!
Caímos na risada. Esperei ela terminar de rir e comentei:
— É bem mais simples do que você imagina, viu...
Ela me olhou com desconfiança, ainda achando tudo surreal, e disse:
— Não, migo... isso aí pra mim é coisa de série. E das boas!
E era isso que eu mais gostava na Drielle: o jeito leve, curioso, sem preconceitos. Ela ouvia, perguntava, se espantava, mas sempre com respeito e carinho. Do nosso jeito, a gente ia se tornando ponto de apoio um do outro naquele mar de números, contas e sonhos divididos entre um turno de trabalho e uma aula à noite.
Os corredores da faculdade à noite têm outro ritmo. Tem gente com sono, de uniforme de trabalho, conversas rápidas entre uma aula e outra. Muita gente ali tá como a gente: tentando equilibrar trabalho, estudo, contas pra pagar e, quando dá, alguma vida social.
Apesar do cansaço, gosto da rotina. Não é fácil, mas me faz sentir que tô indo pra algum lugar. Mesmo que esse "lugar" ainda não tenha nome — seja um diploma, um emprego melhor, ou só a sensação de que tô fazendo algo por mim.
Drielle costuma dizer que é o nosso jeito de remar contra a maré. E é mesmo.
No sábado, já perto do fim do expediente, Pedro passou pela minha mesa e perguntou, num tom quase casual:
— Renato... será que você consegue me cobrir por dez dias?
Levantei os olhos Eu já sabia que mais cedo ou mais tarde isso ia acontecer. Ele completou, antes que eu dissesse qualquer coisa:
— Tô pensando em tirar uns dias de férias. Nada demais... só pra respirar um pouco.
Pensei rápido. Respirei fundo, assenti com a cabeça e respondi:
— Consigo, sim.
Ele sorriu, meio aliviado, e disse:
— Valeu. Vou avisar a equipe agora.
Logo depois, reuniu todo mundo na recepção da contabilidade. Com aquele jeito direto, anunciou:
— A partir de segunda-feira, eu entro de férias por dez dias. E quem vai assumir meu lugar nesse período é o Renato. Dei a ele total autonomia. Qualquer coisa, conversem direto com ele.
Olhares se voltaram pra mim. Alguns sorriram, outros só acenaram com a cabeça. Eu fiquei ali, meio travado, mas firme. Quando todo mundo voltou pras suas funções, ele se aproximou novamente da minha mesa.
— Luana está ciente de tudo e vai estar aqui pra te dar suporte se precisar — disse, com tom calmo.
Depois, fechamos a contabilidade juntos como fazíamos sempre. Mas naquele dia, antes de sair, ele me entregou um molho de chaves.
— Ah, e só pra constar... você vai ganhar um extra por esses dias. Nada mais justo — disse, me olhando com um meio sorriso.
Assenti, mas ele percebeu que eu estava pensativo. Provavelmente, preocupado com a responsabilidade em cima de tanta coisa acontecendo.
— Eu sei que tua rotina está uma correria, faculdade à noite, trabalho o dia todo... — ele pausou — Mas eu preciso abstrair a cabeça, Renato. De verdade. Preciso respirar um pouco.
— Vai pra onde? — perguntei.
— Ainda não decidi. Mas vai ser no litoral. Quero praia, sol e zero planilhas por uns dias.
— Vai sozinho?
— Sim. Por quê?
— Nada... — disfarcei o riso. — Só achei que ia levar a Naty.
— Ah, vai tomar no cu, Renato!
Cai na risada. Ele também. Era sempre assim. Entre números, pressões e responsabilidades, a gente dava um jeito de rir. Mas quando saí da contabilidade naquele sábado, tudo que eu queria era chegar em casa. Só isso.
Quando chegava o fim de semana, tudo que eu mais queria era ficar em casa. Depois de uma semana inteira equilibrando trabalho e faculdade, meu corpo pedia descanso — e minha cabeça também.
Eu gostava de aproveitar esse tempo com meus pais, sentar na sala, ver um filme qualquer, ouvir as histórias repetidas do meu pai ou só falar das fofocas da família e dos famosos com minha mãe . Aprendi, justamente nessa fase em que quase não parava em casa, que o lugar mais sagrado é o nosso lar. E ironicamente, era onde eu menos ficava — só pra dormir, praticamente.
Mas os fins de semana não eram só de filmes e sofá. Eram também os dias de matar a saudade dos amigos por videochamada. A gente fazia aquela conferência básica, cada um deitado na sua cama, com cara de cansado, falando da vida, trocando fofoca, contando novidades ou simplesmente dividindo o silêncio confortável da amizade.
Foi na primeira videochamada depois do início da faculdade que rolou de tudo um pouco. Breno e Dinei contaram que seguiam tentando. Breno, com aquele jeitinho romântico dele, disse que o amor deles era forte e que sobrevivia a mais um gigante. Dinei, mais calado, só fez que sim com a cabeça.
Gil também abriu o coração. Contou que Jefferson era meio ogro pra ter conversa de relacionamento — que às vezes era super protetor, mas em outras se fechava completamente, se afastava, e ele não sabia muito bem como lidar com isso.
— Eu não sei como chegar nele — Gil confessou, com o rosto meio apagado pela luz fraca do quarto. — Já tentei puxar papo, mas ele sempre muda de assunto.
— Gil... — falei, olhando fixamente pra tela — você já se relacionou com gente pior, e sabe disso. Jefferson tem os dilemas dele, mas se você chegar com jeitinho, dá pra conversar sim. Só não pode ir na pressão.
Ele ficou pensativo, mas assentiu.
Entre tantas conversas naquele dia, a gente acabou decidindo que no próximo fim de semana ia se encontrar pra uma social. Só não sabíamos ainda onde seria, mas que ia rolar, ia.
Era também nesses dias em que eu e Anderson trocávamos mais mensagens. Às vezes, a conversa fluía por horas; outras, era só um “oi, tô com saudade” que já bastava pra mexer com o resto do meu sábado.
Durante a semana, eu quase não respondia de imediato, tentava me desligar do celular enquanto estava na faculdade — a não ser pra tirar uma foto no intervalo. Mas no fim de semana, eu tinha tempo e espaço pra estar mais presente, mesmo que virtualmente.
No domingo, meus pais foram convidados pelos meus tios para almoçar na casa deles. O convite se estendia a mim também, mas eu recusei. Disse logo de cara que não ia. Quando eles quiseram saber o motivo, fui direto:
— Não tô afim de forçar simpatia com a Amanda. Não tô pronto pra isso.
Eu sabia que, de certa forma, todo mundo já tinha resolvido “botar uma pedra no assunto”. Até o Anderson parecia disposto a relevar o que aconteceu e dar mais uma chance. Só que pra mim era diferente. Mais complicado.
Amanda mexeu diretamente comigo. Não foi uma situação generalizada, não foi indireta. Eu fui o alvo. Lembro das palavras lançadas com veneno, dos deboches, da cara de nojo. Isso não se esquece fácil. Não dá pra agir como se tivesse sido só um mal-entendido.
Meu pai me olhou por alguns segundos depois que falei. E com aquela calma que ele sempre tem quando quer ser firme sem pressionar, disse:
— Tá tudo bem... você está na sua razão de não querer ir. Mas pessoas mudam, Renato. Pessoas precisam de oportunidades para mostrar que mudaram. Como você vai saber se ela mudou, se nem chance de demonstrar isso você está dando?
Fiquei em silêncio. Não porque concordava, mas porque entendi o peso da pergunta.
Minha mãe completou, num tom mais suave:
— Esse novo rapaz que está fazendo bem para ela… mudou muito ela. De verdade.
Na hora, pensei comigo: será que mudou mesmo? Ou Amanda é uma daquelas pessoas que moldam a própria personalidade de acordo com o macho da vez? Aquela mudança repentina, quase teatral, não me convencia. Não ainda.
Mais tarde, mesmo sem ir ao almoço, resolvi mandar uma mensagem pro Anderson. Falei que meus pais tinha ido almoçar na casa dos pais dele, que eu tinha agradecido o convite à minha tia, que preferi não ir por estar cansado — o que era verdade — mas que o motivo maior ele já sabia.
Não demorou muito e ele me ligou por videochamada.
Atendi.
Ele apareceu na tela da câmera ainda com o cabelo bagunçado, sem camisa, deitado no sofá. Sorriu de leve.
— Desculpa a aparência... tô todo descabelado — disse, passando a mão no cabelo — Mas você devia ter ido. Não pela Amanda, mas pela nossa família. Eles estão cada vez mais próximos, mais unidos... você já esqueceu que até pouco tempo atrás mal se falavam?
Respirei fundo, mantendo o celular na altura do peito, com a imagem dele bem ali, invadindo meu quarto de novo.
— Eu sei... só que hoje não era o dia. Eu não ia ficar bem lá. Não hoje.
Ele assentiu em silêncio, como quem entende, mas não concorda. Mudou de assunto.
— Tudo bem com você?
— Estou tentando manter a cabeça no lugar. Minha rotina está uma loucura. Comecei a faculdade, e agora vou cobrir o Pedro por dez dias lá na empresa.
O rosto dele se iluminou.
— Sério? Que foda. Estou muito feliz por você. De verdade.
Sorri de volta, com aquele sorriso sem jeito de quem não sabe lidar muito bem com elogio vindo de alguém que mexe com a gente.
Mas aí ele soltou:
— E o seu coração, como anda?
Desviei os olhos, disfarcei.
— Batendo...
— Só isso?
— Só isso — repeti, num tom mais baixo. Não queria entrar em detalhes. Ainda não.
Então devolvi:
— E o seu?
Ele riu, abaixando um pouco a cabeça, como se quisesse esconder o sorriso.
— Batendo também. E ele acelera quando eu penso num carinha que está em Volta Redonda... principalmente agora. Agora mesmo ele tá quase saindo pela boca de tanto nervoso. E tudo isso porque esse carinha está aqui, bem na minha frente... na tela do meu celular.
— Anderson... — chamei, num tom baixo.
Ele riu, mas agora era um riso nervoso. Respirou fundo.
— Eu não vou omitir os fatos. Continuo pensando em você, sim. Me pego vendo suas fotos no Instagram, sim. Às vezes até ouço seus áudios. Sei que vacilei feio em terminar com você. Fui burro. Mas eu estou pagando a língua... e o pior é que não posso fazer nada, porque não tá mais no meu alcance. E você tá certo em não parar a sua vida. Nem quero isso. Só que... olha você aí, todo radiante, vivendo tudo isso — ele fez uma pausa breve— Eu só queria estar vivendo isso do seu lado.
Ficamos em silêncio. Por alguns segundos, O peso daquilo tudo ficou ali, entre a tela e o peito, como um silêncio sufocante. Eu respirei fundo, tentando manter o controle da situação.
— Anderson... por favor, não se desgaste. A gente já teve essa conversa.
— Eu sei, Renato. Mas isso aqui — ele apontou pra tela — isso aqui é raro. Te ver assim, me olhando, mesmo que por vídeo, é difícil. Então deixa eu aproveitar esse tempo e falar o que tá engasgado. Eu não quero forçar a barra, pelo amor de Deus. Mas, Renato... eu não consigo ter olhos pra outro cara. E não vou mentir: já tentaram. Na academia um cara já me cercou, me fez até proposta... mas não rola. Porque é você. Sempre foi.
Aquilo me pegou de surpresa. Uma pontada de ciúme e raiva bateu forte. Disfarcei o incômodo, tentando soar neutro, e perguntei:
— E esse cara da academia?
Ele entendeu minha reação, mas respondeu sem fazer alarde:
— Nada demais. Depois do que aconteceu, preferi mudar de horário para evitar cruzar com ele. Não quero contato. Eu deixo bem claro que não curto.
Fez uma pausa, me olhando com um leve sorriso, mas com algo de provocação nos olhos:
— E você? Eu duvido que ninguém aí tenha te jogado umas indiretas... ou até mesmo te cantado.
Antes que eu dissesse qualquer coisa, ele ergueu a mão, cortando:
— Não, não quero saber. Esquece o que eu falei. Só de imaginar você se entregando pra outro já me dá um troço aqui.
Passou a mão no rosto, visivelmente incomodado com o próprio pensamento. Eu respirei fundo. Entendia o incômodo... talvez mais do que gostaria.
Ele então desviou o foco:
— Tenho uma novidade pra contar: Estou saindo com o pessoal do trabalho. Tipo o que você faz com o Pedro. Terminou o expediente, a gente vai pra um bar, toma uma cerveja, fala besteira... tem sido bom. Pelo menos assim eu não fico tão isolado.
— Isso é importante — falei, tentando manter o clima mais leve. — Você precisa se distrair, ter sua vida, se cercar de gente que te faça bem.
Ele assentiu com um meio sorriso, mas logo comentou:
— Um dia desses eu encontrei o César lá no bar.
Arqueei as sobrancelhas.
— É mesmo?
— É. Ele ficou branco quando me viu. Sério. Mas vou te confessar: tive vontade de socar a cara dele. Só não fiz porque ele foi embora logo depois que me viu.
— Eu acho bobeira você fazer isso. Ignorar é o melhor caminho. Não dizem que o desprezo é a melhor vingança?
Ele balançou a cabeça com aquele ar de quem tenta, mas nem sempre consegue:
— Sim... mas nem todo mundo é pacífico e tem sangue frio igual a ti. E te digo mais: tô dando sorte de não ver aquele bosta do Manuel por aqui.
— E se ver, não vai fazer nada. Assim como não fez com o César. Coloca na sua mente que eles são passado na sua vida.
Ele sorriu, mas com os olhos ainda sérios:
— E eu, Renato? Me diga. Sou o que na sua? Passado, presente ou futuro?
Suspirei, sentindo o peso da pergunta.
— O que posso dizer... é que você fez parte do meu passado, e tá fazendo parte do meu presente. Senão a gente nem estaria aqui agora, tendo essa conversa. — Sorri de canto. — Agora... sobre o futuro, só a Deus pertence. Embora... eu queria muito conhecer uma cigana que adivinhasse o futuro de verdade. Para saber umas paradas. Assim eu evitaria muita coisa.
Ele deu uma risada fraca e ficou em silêncio por alguns segundos, até mudar o tom:
— Renato... posso te fazer uma pergunta?
Parei. A voz dele veio mais baixa, hesitante:
— Quer saber... deixa pra lá.
— Tem certeza? — perguntei. — Não quer falar?
Ele hesitou, olhando pra tela como se brigasse consigo mesmo. Até que soltou:
— É que eu tenho medo da resposta.
Respirou fundo.
— Você... você tem medo de me perder?
A pergunta me travou. Fiquei em silêncio, tentando assimilar.
Ele franziu a testa, impaciente:
— É tão difícil responder isso?
— Não... — respondi, ainda me organizando por dentro. — É que eu tava pensando numa forma de dizer.
— Então diga.
Encarei a tela. Encarei ele. E deixei sair.
— Olha, Anderson... como você sabe — e como eu já te confirmei — eu te amo. E você sabe disso. Já fiz tanta coisa por você... a gente já morou junto, naquela casa de foda…
Ele sorriu e assentiu.
— Quando você foi pra Joinville, minha vida virou de cabeça pra baixo. Foi como se tudo tivesse sido sacudido de uma vez. E eu me vi ali, sem você. Você sabe que não foi fácil. Mas era preciso te deixar ir... voar... por mais que eu quisesse você aqui.
Respirei fundo e continuei.
— Mesmo com você longe, eu nunca pensei em terminar. Nada mudou pra mim. A única diferença era que a gente ia se ver só nos feriados, ou quando um de nós conseguia uma folga. E eu não me queixava muito, porque o Manuel também vinha pra cá...
Fiz uma pausa e fui direto:
— Mas respondendo a sua pergunta: eu tenho, sim. Tenho medo de te perder. Porque agora estamos solteiros. Antes, mesmo distante, eu acreditava fielmente na gente. Hoje é diferente. A gente não tá imune a conhecer alguém. De repente, numa dessas saídas, você encontra um cara...
— Não haverá outro cara! — ele cortou, firme. — Você é o único homem. Aquele desgraçado do Manuel só foi um figurante aproveitador, chantagista, que pegou carona na nossa história.
Eu abaixei os olhos por um instante. Voltei devagar:
— Mas eu preciso reforçar... você pode conhecer alguém. Assim como eu posso conhecer alguém aqui. Não que isso vá realmente acontecer, mas é uma possibilidade. A gente não sabe do dia de amanhã. E, assim como eu, você também precisa de toque, de afeto, de sexo...
Silêncio.
O olhar dele endureceu. A expressão se fechou.
— Renato, acho melhor a gente encerrar essa ligação por aqui. Não tô gostando do papo. parabéns pelas conquistas, até mais. — disse seco e a ligação caiu.
Fiquei ali, olhando pro celular por alguns segundos. A tela preta. O quarto em silêncio.
Pouco depois, chegou a mensagem:
“Desculpa. Eu só... eu só me sinto mal com a possibilidade de nunca mais poder te ter como eu sempre tive.”
Fico ali, deitado, olhando pro teto, mergulhado nos pensamentos. A ligação com Anderson ainda ecoa na minha cabeça. As palavras, os silêncios, os sentimentos cruzados. Tudo junto, tudo confuso.
Estou nesse vai e vem interno quando escuto um som de porta se abrindo. Meus pais chegaram. Me levanto, vou até a sala, encontro os dois tirando os sapatos, rindo de alguma coisa.
— E aí, como foi o almoço? — pergunto, tentando parecer despreocupado.
Meu pai, visivelmente alegre — e levemente alterado pela cerveja — abre um sorriso e diz animado:
— Foi muito bom! Você perdeu, hein!
Olho pra minha mãe, que também sorri. Ela ajeita a bolsa no sofá e diz:
— Perguntaram de você. Eu falei que no próximo você vai fazer um esforço pra ir.
Fico quieto, só balanço a cabeça.
Ela, então, completa, como quem se lembra de algo de repente:
— Ah! E o namorado da Amanda... o...
Ela faz uma pausa, tentando lembrar o nome. Olha pro meu pai:
— Qual o nome dele, vida?
— Sidnei — responde ele, quase automático.
— Isso! O Sidnei. Ele disse que tá doido pra ter uma conversa contigo. Mas comentou que nota que você é muito fechado...
Só observo. Não respondo nada. Engulo em seco. A vontade de responder vem, mas decido não abrir discussão.
Minha mãe me olha de canto, como quem tenta decifrar minha expressão. Mas eu apenas murmuro um “hum” e sigo pro meu quarto.
Por dentro, eu só pensava: Sidnei quer conversar comigo? Sobre o quê? Porque se for pra tentar me convencer a dar segunda chance pra Amanda... ele vai perder tempo.
No meu quarto, ligo a TV e deixo no Fantástico. As reportagens me distraem um pouco, ajudam a silenciar o turbilhão de pensamentos. Política, esporte, música... tudo passa meio automático, mas ainda assim é melhor do que ficar encarando o teto.
Depois de um tempo, bate aquela fome. Olho a hora e resolvo descer pra comer alguma coisa.
Vou pisando leve pelos degraus, tentando não fazer barulho. Mas, antes mesmo de chegar à cozinha, escuto algo vindo do quarto dos meus pais. Não era a TV. Era... outro tipo de programação.
O barulho da cama batendo na parede... os gemidos abafados... e, de repente, a voz da minha mãe, rindo entre os sussurros:
— Vai devagar, senão o menino escuta!
E meu pai, com aquela calma debochada:
— Renato tá lá em cima. E outra, ele sabe que a gente transa... ele é resultado de uma!
Abro um sorriso contido, meio sem graça, meio achando graça mesmo. Em vez de acender a luz da cozinha, ligo só a lanterna do celular, preparo um misto frio rapidinho, pego um copo de refrigerante e subo de volta pro quarto sem fazer alarde.
Ali em cima, como em silêncio, já sentado na cama. A televisão continua ligada, mas agora meu pensamento tá longe da programação.
Enquanto termino meu lanche, o celular vibra ao meu lado. É uma mensagem do Pedro.
Pedro: Tá tudo certo pra amanhã, né?
Sorrio de leve com a pontualidade dele. Sempre prático, sempre direto.
Respondo com tranquilidade:
Eu: Tá sim. Pode descansar tranquilo.
Guardo o celular na cabeceira e me levanto. Vou até o banheiro, tomo um banho demorado, deixo a água cair nos ombros como se quisesse lavar também os pensamentos. Aproveito pra fazer a barba — não que estivesse por fazer, mas era quase um ritual. Uma forma de me preparar.
Depois escolho a roupa do dia seguinte, deixo tudo separado. Camisa passada, calça pronta, sapato limpo. Gosto de deixar tudo no jeito. Me dá uma sensação de controle, ainda que seja só aparência.
Por fim, apago as luzes e me deito.
No escuro, olho pro teto por alguns segundos antes de fechar os olhos. Amanhã começa mais uma fase. E eu queria estar descansado pra segurar o volante — da faculdade, do trabalho, da vida.
E então, durmo.
Acordo e começo a me preparar pra mais um dia. Hoje não é um dia qualquer. Hoje é o primeiro dia que vou substituir Pedro.
Me visto com calma, coloco a roupa que separei na noite anterior e, ao chegar na cozinha, encontro meus pais já sentados à mesa. Pareciam estar me esperando. Minha mãe com a caneca de café nas mãos, meu pai folheando o jornal de domingo do dia anterior, como quem só finge que lê.
— Bom dia — digo, entrando e sentando à mesa.
— Bom dia, filho — respondem quase em coro.
Coloco o café na xícara, passo o pão e, antes de qualquer coisa, respiro fundo e solto:
— Gente, confesso que estou um pouquinho nervoso. Já cobri o Pedro outras vezes, então estou tentando encarar numa boa. A diferença é que, dessa vez, ele vai ficar fora por mais dias… aí bate uma certa responsabilidade a mais.
Meu pai me olha firme e fala com aquela voz de quem já passou por muita coisa:
— Vai dar tudo certo, você sabe o que faz.
Minha mãe completa com um sorriso calmo:
— E não precisa ficar nervoso. Só confia em você.
Ficamos ali por pouco tempo. Logo meu pai se levanta e eu aproveito a carona.
No caminho, entre um sinal fechado e outro, olho pra ele com um sorriso no canto da boca:
— Acho que tá na hora de você trocar sua cama.
Ele me lança um olhar de canto, já prevendo onde aquilo ia dar:
— Não começa!
— Mas é verdade, pai. A cama tá gemendo mais do que você e minha mãe juntos.
Ele tenta se segurar, mas acaba soltando uma risada.
— Tá bem, né? Olha quanto tempo a gente tem aquela cama... você era pequeno quando a compramos. Ela já vivenciou cada coisa, até que aguentou muito.
— Me poupe, pai. Mas sério... compre outra cama, pra ontem.
Desço do carro rindo e já vejo parte da equipe se aproximando. Destranco o portão, abro a porta principal e deixo todos entrarem. Só então peço um instante da atenção deles:
— Gente, desejo de verdade que a gente tenha um bom dia. Como vocês já sabem, nesses próximos dias serei eu quem vai estar aqui no lugar do Pedro, mas por favor, não me vejam como um cara que vai ficar marcando em cima. Eu acredito no trabalho de vocês, essa equipe já mostrou que sabe o que faz. Mas tô aqui pra cumprir meu papel, então precisando de algo, falem comigo ou com a Luana, combinado?
Todo mundo acena com a cabeça e vai pra sua rotina.
Fico ao lado da Luana por alguns segundos, observando o fluxo se formando.
— Quer café? — ela oferece.
— Aceito, claro.
Estou indo em direção à minha mesa quando escuto a voz dela pelas minhas costas:
— Tá indo pra onde, Renato?
Me viro confuso.
— Ué... pra minha mesa.
Ela cruza os braços com um sorriso no rosto.
— Você tá cobrindo o dono disso aqui. Sua sala hoje é outra: a sala do chefe.
Paro por um segundo. Olho pra porta da sala do Pedro, e me pergunto em silêncio:
"Será que devo?"
Mas não penso duas vezes. Entro. A sala é mais silenciosa. Me sento na cadeira dele — super confortável, por sinal — e deixo o corpo afundar.
Sorrio de leve, sozinho.
Fico ali, sentado recebendo relatórios, respondendo e-mails, atendendo pedidos de clientes. Uma hora ou outra, Luana entra na sala com alguma dúvida de um colega — e, ao invés de apenas dar uma instrução, eu me levanto e vou até a mesa da pessoa. Isso, inclusive, gerou certa surpresa.
— Ué... você mesmo veio? — comentou um deles.
Pedro nunca fazia isso. Ele dava as orientações pra Luana e ela repassava ao time. Eu não. Eu preferia o contato direto. Fazia duas rotas durante o expediente: uma pela manhã e outra à tarde. Passava na mesa de cada um, perguntava se estava tudo certo — e, na maioria das vezes, estava.
Eu saía meia hora mais cedo que o restante, afinal, tinha que correr pra faculdade e não podia me atrasar. Luana ficou responsável por fechar o expediente nesses dias, e ela fazia isso com perfeição.
Quando chego na faculdade, ainda com o fôlego do dia puxado, Drielle já está me esperando na entrada. Assim que me vê, abre os braços e me abraça apertado, daquele jeito dela que é quase um recarregar de energia.
— Menino, fui num pagode domingo... você tinha que ver! — começa a falar enquanto seguimos andando em direção ao bloco das salas. — Cheio de negão bonito. Um mais cheiroso que o outro! Mas calma, não peguei ninguém. Embora queria um lá.
Dou risada. Drielle é uma personagem à parte.
Já em sala, era quase impossível a gente conversar. O professor falava, os colegas interrompiam, e a gente trocava só olhares e sorrisos quando alguém dizia algo engraçado ou absurdo demais.
No intervalo, ela chega mais perto e pergunta baixinho:
— Você reparou que o Cauã — sim, o mais gato do nosso período — tá sem aliança?
— Nem notei — respondo.
— Você anda muito distraído, Renato...
Dou uma risada e devolvo:
— E você ainda não percebeu que, além de mim, tem outro gay na sala, né?
Ela arqueia a sobrancelha:
— Quem?
— Érick.
— Como você sabe?
— Intuição. Mas daqui a uns dias você vai me dar razão. Somos uma dupla de distraídos, Drielle.
Rimos juntos. Aquela cumplicidade boba e leve que só amizade recém-nascida, mas de alma antiga, consegue ter.
A semana corre bem, entre contabilidade, planilhas, café e olhares silenciosos na faculdade. Até que chega a quarta-feira. Estou voltando da aula quando o celular toca. É Gil.
Atendo no meio da rua, com a mochila nas costas.
— Ainda tá em aula? — ele pergunta direto.
— Não, acabei de sair.
— Ótimo, então ouve aqui: eu, Breno, Dinei, Jefferson decidimos ir pro Aldeia no domingo. Passaremos às nove da manhã na sua casa para te pegar.E nem vem com desculpa, viu? Não é pra recusar.
Quando Gil anuncia que no domingo a gente vai pro Aldeia, não consigo evitar a pergunta:
— Lógico que estou dentro! Mas há clima pra isso?
— Ué, qual a diferença de fazer uma social lá em casa ou na sua pra ir no Aldeia? — ele retruca, direto. — A gente vai se esbarrar do mesmo jeito.
Pensei um pouco, meio sem jeito, e mandei:
— Posso convidar alguém?
Do outro lado, ele já debocha:
— Hum... já tá com contatinho da faculdade, piranha!
— Não, seu besta! — respondo rindo. — Tô pensando em convidar o Felipe. Acho que seria bom pra ele sair daquela bolha de caras safados que ele se envolve. Ele é maneiro, tem uma vibe parecida com a nossa. E, de quebra, ajuda a quebrar esse clima chato que tá no grupo... sem falar que eu não fico sobrando no meio de vocês, né?
Gil pensou dois segundos e respondeu:
— Por mim, tranquilo. Mas vou falar com o pessoal no grupo, beleza?
— Agora não consigo interagir muito, tô saindo pra jantar. Mas depois eu entro lá.
Chego em casa, tomo um banho, como alguma coisa e dou uma olhada no grupo. Como era de se esperar, Dinei já soltou aquela implicância de sempre, achando que não era uma boa ideia.
Respirei fundo e fui direto:
— Pra mim, é uma ótima ideia. O Felipe parece ser super de boa, além de animado. Vai ser legal.
Depois de alguns comentários, meio a contragosto, o aval foi dado. Então resolvo convidar o Felipe.
Mandei uma mensagem pra ele:
"Oi, Felipe! Então, meu grupo vai no Aldeia no domingo, sairemos daqui às nove da manhã e a gente queria te convidar. É um lugar massa, dá pra comprar o ingresso na hora. Acho que vai curtir. A vibe é boa e a galera também."
Ele respondeu quase que na hora:
"Pô, que da hora! Tô dentro. Só vou chegar um pouco mais tarde, mas estarei lá."
Confirmei para meus amigos que Felipe iria. Depois disso, desliguei o celular, respirei fundo e me deitei. Já era tarde, e eu só queria descansar — ao menos por algumas horas.
Sexta-feira, eu levantei como de costume e, de cara, recebi uma mensagem de um colaborador dizendo que estava passando mal e que possivelmente não iria trabalhar. Respondi para ele ir ao hospital e, caso pegasse atestado, que levasse o documento quando retornasse ao trabalho para homologação.
Chegando à empresa, dou bom dia a todos como de praxe e percebo que Luana não está muito bem. Quando todos entram, pergunto se ela está bem e ela diz que é só um enjoo. Falo que, se quiser, pode ir pra casa, mas ela responde de imediato:
— Negativo. Já temos menos um hoje.
— Já está sabendo, então? — pergunto.
Ela ri e diz:
— Claro. Depois que você disse pra ele levar atestado, ele me mandou mensagem indignado. Achou um absurdo você falar aquilo, justo com ele, que tem anos e anos de empresa.
Olho pra ela surpreso, e ela completa:
— Isso é bom. Tem gente achando que só porque o Pedro não está aqui pode fazer corpo mole.
Seguimos fazendo nosso trabalho, lidando com as coisas que já estávamos acostumados. Até que, por volta das onze da manhã, ouço uma movimentação no corredor. Reconheço a voz da Luana, mas a outra eu não consigo identificar, abre a porta com tanta violência que ela bate com tudo na parede, fazendo tremer a estrutura.
Manuel entrou como um furacão.
— O que você tá fazendo aqui, caralho?! — ele gritou, os olhos arregalados de raiva, o corpo tenso, o maxilar travado.
Eu fiquei parado, em choque, sem saber se levantava, se respondia ou se pedia ajuda.
— Manuel... calma. Vamos conversar.
— Calma é o caralho! — ele berrou de novo, e sem hesitar, atravessou a sala em dois passos largos e deu um tapa com força no monitor da mesa. O equipamento voou e se espatifou no chão, espalhando pequenos vidros.
— Manuel, pelo amor de Deus! — tentei levantar, mas ele veio pra cima de mim com tudo, me agarrou pelo colarinho, a cadeira virou, e eu fui ao chão.
Ele subiu por cima de mim, os punhos cerrados, prontos pra descer o soco.
— É hoje que você vai pagar por tudo, desgraçado!
Nesse instante, Luana entrou correndo, desesperada. Ela soltou um grito que ecoou por toda a empresa:
— MANUEL, PELO AMOR DE DEUS! NÃO FAÇA ISSO!
Ela chorava, implorando, esticando os braços, mas sem coragem de se aproximar com medo de agravar ainda mais a situação.
Ele congelou, com o punho ainda no ar. Os olhos arregalados, a respiração descompassada. A tensão era insuportável. Tudo parecia em câmera lenta.
Aproveitei o vacilo. Com um movimento rápido, empurrei ele com o joelho, jogando seu corpo pro lado oposto. Me levantei num pulo, com o coração saindo pela boca.
— Tá maluco?! O que você tá fazendo?! O seu pai não tá aqui! Quer resolver o quê com essa violência?
— Eu só vim verificar quem estava cobrindo as férias do meu pai! Meu pai me contou que ficaria ausente — ele cospe as palavras, ríspido, me encarando — Mas eu falei pra ele botar outra pessoa. A Luana, por exemplo. Mas não. Ele nunca me dá ouvidos. Tinha que ser você, né? Não podia ser outra pessoa? Filho da puta...
— E você queria que eu fizesse o quê, Manuel? Me diga. Seu pai não tinha muitas opções. A Luana tem competência, claro, mas ele por algum motivo me quis aqui. E você não ia sair de Joinville para cobrir ele.
Luana ainda estava no canto da sala, tentando recuperar o fôlego. Olhava pra mim com os olhos arregalados, assustada.
— Sai daqui, Luana! Isso aqui é entre eu e esse desgraçado! — Manuel berrou, apontando o dedo na minha cara.
Luana se retira, após eu sinalizar para ela sair.
— Ainda bem que ela saiu — ele diz, cínico. — Porque o que eu tenho pra te falar, ela não merece ouvir.
— Pode falar. Desde que tenha respeito por quem está aqui trabalhando. Se não...
— SE NÃO O QUÊ? — ele grita e dá um soco tão forte na mesa que ecoa como um trovão. A mesa treme, e eu também. Como aquela mão não quebrou, não sei.
— Senão vai ser difícil manter um diálogo — respondo, firme.
Ele puxa uma cadeira, joga o corpo nela de qualquer jeito, e debocha:
— Senta aí, patrão.
Eu continuo de pé.
— Diga o que tem pra dizer. — eu disse.
— Você sabe o que eu penso disso tudo, né? Pra mim, você desistiu de mim e do Anderson pra ficar com meu pai. Só pode ser isso. Ele voltou a te comer, né? Só pode. Porque pra não abrir mão de você, tem que tá rolando alguma coisa. E você, fácil como é, deve tá aceitando em troca de cargo, grana, prestígio. Parabéns.
— Lamento que pense assim. Mas não vou me dar ao trabalho de te responder, porque lá no fundo você sabe que isso não é verdade.
— Nem precisa. Os fatos falam por si. Você conseguiu o que queria. Me usou pra chegar onde está.
Luana retorna. A tensão no rosto dela é visível:
— Com licença. Manuel, se acalma, por favor. Acho melhor você ir para sua casa.
Concordo:
— Acho melhor você ir mesmo. Se quiser podemos conversar em outro momento.
— Ah, é isso? — ele levanta, se inflando. — Quer que eu saia da empresa que também é minha? É isso, seu desgraçado?
— Não é isso que estou querendo dizer. Você está muito alterado e aqui não é o melhor local para termos essa conversa.
O celular dele toca. Ele olha. Pedro.
— Olha o papai ligando — diz, com desprezo. — Já deve estar sabendo que eu tô aqui.
Ele atende:
— Fala, pai. Sim, tô aqui. Não, não vou sair. Mas por quê? A gente já conversou sobre isso. Não era pra ele...
Antes que ele termine, olho discretamente para Luana que pisca pra mim com um olhar cúmplice. Foi nesse instante que entendi: foi ela quem avisou Pedro.
— Mas pai...
Ele desliga na minha frente, incrédulo.
— Ele desligou na minha cara — diz, como se aquilo fosse a última gota.
Logo depois, meu celular vibra. É Pedro.
E eu atendo sob o olhar atento de Manuel:
— Renato, me desculpe por isso. Não sei porque ele está aí, Ele nem me avisou que viria pra Volta Redonda. Faz o seguinte: fecha a contabilidade, libera a galera. Volte só segunda. Você não precisa passar por isso.
— Não, Pedro. Me dá um voto de confiança. Vou tentar resolver isso aqui do meu jeito.
Desliguei e encarei Manuel. Aquilo não ia terminar bem se eu continuasse na defensiva.
Era hora de virar o jogo. A única forma de controlar um furacão era entrar no meio dele.
— E aí, o que ele falou? Me diga! — grita Manuel, já agitado, andando de um lado pro outro feito um leão preso em jaula.
Eu respiro fundo. Enquanto penso, ele continua vomitando seu ódio, falando sozinho:
— Aposto que ele já tá todo preocupado com o funcionário que libera o cú pra ele. Deve tá pedindo pra você se preservar? Babando ovo como sempre. Vai te dar mais um aumento agora?
Eu nem respondo. Eu precisava tirar Manuel dali sem mais escândalo, e para isso, era melhor tê-lo no meu time — ou pelo menos à mesa — do que contra mim, berrando feito um maluco dentro da empresa.
Foi ali exatamente no meio daquele furacão, que me veio a ideia. Encarei Manuel com firmeza, sem abaixar o olhar nem por um segundo.
— Vamos fazer o seguinte, Manuel? Já tá quase na hora do almoço, e que tal almoçarmos juntos?
Ele trava. Fica sem reação por dois segundos.
Até Luana, que observava da porta, solta um “hã?” baixinho, surpresa.
— Faço questão de pagar. Você parece que tem muito o que falar, e eu também tenho. Acho que essa é a oportunidade perfeita. Mas você precisa se acalmar. Desse jeito, não vai dar.
Ele riu. Uma risada seca, sem nenhuma sombra de humor. Quase debochada.
— Você tá de sacanagem! Almoçar comigo? Você está achando que eu sou o quê? Um cachorro bravo que você vai enganar com um pedaço de carne?
Dei um meio sorriso. Um daqueles que não era simpático, mas cheio de desafio.
— Estou lhe dando uma oportunidade de conversar. Ou você prefere continuar aqui, gritando, quebrando as coisas, fazendo a empresa inteira te olhar como se tivesse perdido o juízo?
Ele apertou os olhos, me estudando. Quase podia ouvir os pensamentos rodando na cabeça dele.
— Você me evita, nem olha mais na minha cara... e agora quer me levar pra almoçar e conversar? Tá achando que isso aqui é terapia em grupo?
— É pegar ou largar, Manuel. Só tô tentando resolver isso de forma civilizada. Se quiser continuar nesse surto, fecho a contabilidade como seu pai mandou, mando todo mundo embora e deixo você aqui gritando pras paredes.
Ele não gostou do tom. Mas me conhecia o bastante pra saber que, se eu falava desse jeito, era porque já estava no limite. Soltou um suspiro, passou a mão na barba e rosnou:
— Tá. Eu aceito. Mas só porque eu também tenho coisas pra falar. E se for alguma armação tua... eu juro por Deus que você vai se arrepender.
— É só uma conversa, Manuel. Não uma armadilha. Agora me aguarde na recepção. Preciso passar umas orientações para Luana.
— Não demora. Tô te avisando.
Ele saiu pisando duro, deixando um rastro de tensão no ar. Virei pra Luana, que ainda parecia em choque, os olhos marejados.
— Você vai mesmo almoçar com ele? — perguntou Luana toda indecisa.
— Sim Lu. Preciso tirar ele daqui, e quando eu sair, faça o seguinte: dê duas horas de almoço pra galera. Liga pro Pedro e diz que não foi necessário fechar a contabilidade, que está tudo sob controle. E... obrigado. Por ter me protegido ali.
Ela só assentiu, engolindo em seco. Estava visivelmente abalada.
Saí da sala. No corredor, os funcionários estavam todos parados, em silêncio, como se assistissem a um episódio de série dramática. Quando me viram, tentaram disfarçar, voltando lentamente pros seus lugares. Eu apenas disse, sem perder a pose:
— Está tudo bem, pessoal. Podem voltar ao que estavam fazendo.
Na recepção, Manuel me esperava impaciente, com os braços cruzados e o pé batendo ritmado no chão, como se cronometrasse meu atraso.
— E aí, pra onde a gente vai? — perguntou, com desdém. — E, sério... por que você está fazendo isso? Mudou de ideia, é?
— Já respondi. Essa é uma oportunidade perfeita para conversarmos, mas se não quiser, a gente encerra aqui.
— Não, pô... vamos. Já tô aqui mesmo. Quero ver qual é a tua.
Algo nele havia mudado. A raiva ainda estava ali, mas agora havia uma curiosidade teimosa misturada. Como quem queria ver onde tudo aquilo ia dar — ou como se, no fundo, esperasse ouvir algo que fizesse sentido.
Escolhi o mesmo restaurante onde já tinha ido com Dinei. Quando ele disse que não estava de carro, fui direto:
— Fica tranquilo. É ali perto.
Enquanto caminhávamos, ele continuava com aquele jeito, olhando pro lado como se desconfiasse até da minha sombra.
— Mas fala aí... por que você está fazendo isso, de verdade?
— Porque já passou da hora da gente resolver essa história. É necessário.
— Necessário pra você, né? Deve estar sonhando em terminar o dia como o bonzinho da história. Aquele que tentou de tudo.
— Acredita no que quiser, Manuel. Só senta, escuta. Depois você decide o que fazer com isso.
Ele bufou e balançou a cabeça, resmungando alguma coisa que não entendi. Mas seguiu do meu lado. O caos tinha sido contido. Por enquanto.
Quando chegamos à porta do restaurante, eu apenas pergunto:
— Está mais calmo? Vai dar pra gente conversar? Se não, a gente pode ir embora.
Ele não respondeu. Apenas entrou, pegou o prato e foi direto se servir, sem sequer olhar pra mim. Aproveitei aquele momento para ir ao banheiro. Eu também precisava respirar e dar um sinal de vida pro Pedro.
Liguei. Ele atendeu no primeiro toque, aflito:
— Renato, tá tudo bem? Onde tá o Manuel?
— Tô no restaurante com ele. Relaxa, Pedro. Estou domando a fera. Vou trocar umas ideias com ele. Quando terminar aqui, te ligo de volta.
Voltei, me servi e com o prato feito, sentei onde Manuel já estava. Logo o garçom apareceu perguntando sobre a bebida. Ele pediu uma cerveja, mas eu fiz um pedido diferente:
— Por hoje, vamos de Coca. Eu ainda volto pro trabalho.
Ele só balançou a cabeça, indiferente. Mas não reclamou.
Por dentro, eu estava num furacão. Não sabia como aquele almoço ia acabar. Mas era a tentativa que eu tinha de colocar um ponto final — ou pelo menos uma pausa — naquele caos todo.
Olhei pra ele, ainda mastigando, e fui direto:
— Seja sincero, Manuel. O que você realmente acha de mim?
Ele soltou um riso curto, meio cínico. Olhou pros lados, e então falou com um misto de desprezo e mágoa:
— Te acho um desgraçado. Um cara que chegou e fodeu com a minha vida. Tenho ódio de você por tudo. Por ainda estar na empresa do meu pai. Por ele te tratar como o funcionário preferido dele. Por eu ter perdido o Anderson. Por ter praticamente perdido a amizade do seu irmão também. Tá me entendendo? Você me tirou tudo de uma hora pra outra. No casamento do seu irmão, eu fiquei isolado. Se não fosse o Naldo, eu teria passado a noite inteira sozinho.
Deu uma pausa, mas não diminuiu o tom:
— Você pode enganar o Anderson, mas a mim não engana. Eu sei que nesse tempo você já deu pra um bocado de gente, porque gente como você não fica sem ninguém por muito tempo.
Engoli em seco. Por dentro, queria levantar e ir embora. Mas respirei fundo e mantive o olhar firme.
— Só isso?
Ele deu de ombros.
— Tem mais, mas acho que você já entendeu.
— Então agora posso dizer o que eu penso de você?
— Manda. Vai ser divertido.
— Ao contrário do que você acredita, eu não cheguei e fodi com a vida de ninguém. Quem chegou com chantagem foi você. Lembra? Nos chantageou querendo participar da parada.
Ele não respondeu, apenas assentiu.
— Eu tive raiva de você, sim. Mas com o tempo, você foi me ganhando. Me defendia, me fazia rir. Eu encontrei em você carinho, respeito... Coisas que o Anderson, muitas vezes, não me dava. E você sabe disso. Teve momentos em que eu me senti mais amado por você do que por ele.
Ele baixou os olhos, calado.
— A gente se dava bem. De verdade. E eu te ajudei a entender muita coisa sobre você mesmo. Teus dilemas, teus bloqueios. E quando você começou a se entender melhor... foi aí que você se entregou de vez pro Anderson. E eu te dei todo apoio.
— Vai ficar jogando as coisas na minha cara?— Ele perguntou num tom baixo e calmo.
— Não estou jogando nada na sua cara, apenas te mostrando que eu tenho um certo valor na sua história, por mais que você negue isso. E sobre o seu pai... já que você sempre joga isso na roda, vamos ser diretos: sim, transamos. Mas a verdade é que foi você quem alimentou aquele clima desde o começo. Você provocava, fazia piadas, jogava verde. Lembra daquela chamada de vídeo que você fez pra ele enquanto a gente transava? Aquilo era normal pra você?
Ele cerrou os lábios, desconfortável.
— Quando a coisa virou realidade, você surtou. E naquele dia, Manuel, você queria entrar no quarto. E não era pra impedir. Era pra participar. E você sabe disso.
— E você? — ele rebateu, com ironia — Aceitou tudo numa boa. Nem hesitou.
— E queria que eu fizesse o quê? Você tinha me convidado pra dormir na sua casa, mas depois o Dinei aparece lá. Você o leva para seu quarto e transa com ele como se fosse a coisa mais natural do mundo. Eu fico na sala assistindo TV com seu pai. E sejamos sinceros: naquela altura, a gente não tinha nada definido.
Ele respirou fundo.
— E olha... se tivesse rolado algo entre mim e seu pai outra vez, eu não teria vergonha de assumir. Seu pai é interessante, inteligente, sedutor. Mas o que temos hoje é amizade. Só isso.
Soltei o ar com força antes de continuar.
— Manuel, o seu erro não foi ter ido pra Joinville. O problema foi querer manter o nosso relacionamento enquanto se jogava pra cima de meio mundo. Aí sim, você errou feio.
— Eu tive uns lances, sim — ele disse, direto. — Mas porra... eu precisava. Sou homem.
— Não usa isso como desculpa. Porque não cola. Eu sou a prova disso! Fiquei aqui, sem vocês, e segui tranquilo. Se o que você queria era liberdade, era só dizer. Queria um relacionamento aberto? Bastava conversar. Do mesmo jeito que você soube falar quando pediu pra gente continuar junto, mesmo à distância.
Mas, em vez disso, você preferiu bancar o garanhão.
E aí, morando com você, o Anderson começou a perceber. Sentiu no convívio. Nas suas grosserias, no desdém. Ele sacou que tinha algo errado. E foi ele quem descobriu a sua traição. Eu? Só fiquei sabendo depois. Bem ali, na hora.
Ele ficou mudo. Pela primeira vez, sem resposta.
— Eu tenho raiva sim. Raiva pelo que você me causou. Por me fazer sair da casa onde eu estava morando, por querer minha demissão na empresa, pelas provocações. E nem vou entrar no mérito do Dinei, do Daniel...
Dei uma pausa. Encarei ele com franqueza.
— Só quero seguir. Levantar a bandeira da paz. Cada um no seu canto. E, honestamente? Quero te ver bem. O Felipe por exemplo. O cara realmente ficou afim de você. Eu passei seu número pra ele, espero que tenham trocado mensagens. Se ainda está com o cara de Joinville, que dê certo. Mas segue em frente. Você merece. O Anderson também. Eu também mereço. Depois de tanto tumulto... a gente merece paz.
— É fácil falar quando você está de boa, quando ainda tem um contato com Anderson.
— Não estamos mais juntos. E, sim, você teve parte nisso. Sua traição respingou em mim. E foi injusto. Porque você usou algo lá de trás, quando nem eu, nem você, nem o Anderson tinha algo sério. Você ficava com mulher, comigo, com o Anderson, com o Dinei... E mesmo assim, quis pintar como se eu fosse o culpado de tudo.
— Não só eu, Anderson também ficava com mulheres… e ele fala de mim?
— Ele não quer te ver nem pintado de ouro. Te odeia. E se você for esperto, evite cruzar com ele em Joinville. Só um conselho.
Manuel passou a mão no rosto. Pela primeira vez, parecia menos arrogante. Pela primeira vez, havia algo humano no olhar dele.
— Às vezes... eu tenho raiva de mim mesmo. Porque, no fundo, sei que errei. Vi as coisas acontecendo e deixei. Achei que dava tempo de consertar. Quando percebi, já tinha perdido vocês dois. E pior... perdi com razão.
Fiquei em silêncio. Às vezes, só ouvir é o bastante.
— Eu queria te pedir desculpas — ele disse. — Pelas palavras e pela forma como te tratei. Talvez isso não mude nada.
— Muda sim — respondi. — Porque, talvez pela primeira vez, a gente tá conversando de verdade. Sem gritaria. Sem jogo. Isso já é um começo.
Ele assentiu, cabisbaixo. O silêncio que se seguiu não foi desconfortável. Foi necessário.
Mas eu ainda precisava deixar claro onde terminava essa conversa.
— Olha, Manuel… só pra deixar bem claro: eu não tô aqui querendo reaproximação. Não quero construir uma amizade, nem vínculo. Muita coisa foi quebrada. Confiança, respeito... E tem coisa que, quando quebra, não cola mais.
Ele apenas me olhava, quieto.
— Só que eu trabalho na empresa do seu pai. E você é amigo do meu irmão. Ou seja, vamos nos esbarrar. Na contabilidade, numa festa, num almoço de família. E eu me recuso a viver esse clima tenso toda vez que a gente se encontra. É desnecessário. É desgastante. E sinceramente, não vale mais a pena.
— Concordo... — ele murmurou.
— Você precisa entender uma coisa: sair da minha vida não te obriga a virar meu inimigo. Dá pra manter distância, sem guerra. Dá pra viver com respeito. Com civilidade. Um “oi”, um “bom dia”... e fim. Eu não quero mais do que isso.
Respirei fundo. Fui ainda mais direto:
— E chega de forçar a barra. Chega de ser inconveniente. Aquilo no banheiro da festa do meu irmão... você apertou meu braço com tanta força que quase me machucou. Passou do limite. Isso precisa parar.
Ele assentiu mais uma vez.
— Eu não queria te machucar. Mas depois... eu vi que passei do ponto.
E com a voz mais baixa, ele acrescentou:
— No fim das contas, acho que fui eu quem mais perdeu. Perdi você. Perdi o Anderson. Nem amizade sobrou. Vocês nem olham na minha cara. O Anderson prefere encarar o chão do que me ver. Talvez eu tenha sido um vacilão, sim. Mas eu não queria perder vocês. Só que eu tava longe, tentando conciliar tudo... e acabei ficando sozinho.
Fez uma pausa e concluiu:
— E quer saber? Eu nem tenho muito mais o que dizer. Mas... eu te amei. De verdade. Posso ter estragado tudo, mas isso eu senti sim.
— Eu nunca duvidei disso — respondi. — Mas quando o Anderson foi morar contigo, você começou a se afastar. Parecia que queria ele só pra você. Parecia uma disputa. E eu? Fiquei de lado.
— Não era isso. Eu só estava tentando segurar as pontas. Morar com ele, dar uma atenção para o outro lá... Era tudo demais.
Fiquei em silêncio. Ele respirou fundo e disse:
— Sobre o Anderson... eu só queria uma chance de me explicar. De me aproximar. Antes de tudo, a gente era amigo.
— Sobre você e ele, Manuel... eu não vou opinar. Nem me meter. Só te dou um conselho: deixe o tempo agir. Se for pra acontecer, que seja natural. Sem forçar.
Ele apenas assentiu.
Terminamos de almoçar em silêncio. Já não havia mais nada a ser dito. Só restava aquela sensação de cansaço emocional depois de tantas verdades ditas.
Chamei o garçom e pedi a conta. Ele só observava, com os olhos fixos no copo vazio à sua frente.
Quando nos levantamos, ficou aquele clima esquisito. Meio travado. Eu não soube como agir. Não sabia se dizia “tchau”, se apenas acenava com a cabeça, se virava e ia embora. Depois de tudo o que foi falado… como se despede de alguém com quem se dividiu tanta dor?
Ele quebrou o silêncio:
— Acho melhor eu ir então.
Assenti com um gesto leve.
— Vai lá...
Ele esticou a mão, me oferecendo um aperto formal.
— Valeu.
Demorei um segundo, surpreso com o gesto. Mas aceitei. Apertei a mão dele, devolvendo:
— Valeu.
Na porta, antes de seguirmos caminhos diferentes, trocamos só um olhar. Sem palavras. Mas havia algo ali. Um reconhecimento. Um “obrigado” silencioso.
Foi estranho. Mas honesto. Tinha algo ali de respeito. De encerramento. Parecia que, enfim, a tal da paz havia sido selada.
Ele virou e seguiu por um caminho oposto ao meu. E confesso que nem sabia que ele tomaria aquela direção. Talvez tenha evitado seguir o percurso da contabilidade. Talvez quisesse tempo para si.
Fui andando devagar. Sentindo o corpo leve, mas a mente pesada. Tanta coisa dita… tanta coisa que precisava ser digerida.
E foi no meio do caminho, já longe dali, que resolvi pegar o celular e ligar para Pedro.
Tirei o celular do bolso e liguei pro Pedro. Ele atendeu quase de imediato.
— E aí? — ele disse, com a voz meio contida, tensa, como quem já esperava o pior.
— Tá tudo certo agora. A gente conversou. E sim… conversei de verdade. Sem briga, sem gritaria.
— E?
— E… acho que ele entendeu o recado. Pedi civilidade, pedi respeito. Disse que não quero amizade nem aproximação, mas também não quero continuar nesse clima pesado. Ele aceitou. Pelo menos por enquanto.
Pedro soltou um suspiro audível do outro lado da linha. Era o som de um alívio que ele nem tentou esconder.
— Cara… eu só queria te agradecer, Renato. De verdade. Você não precisava ter segurado essa bomba sozinho. A empresa é minha responsabilidade. Eu devia ter agido antes.
— Eu entendo, Pedro. Mas era algo que, de um jeito ou de outro, uma hora precisava acontecer. Era isso ou a gente continuar se matando toda vez que ele aparecesse. E isso não ia dar certo por muito tempo.
— E… ele pediu desculpas?
— Do jeito torto dele, sim. E eu aceitei. Mas fui claro sobre os limites. Não quero mais aproximação, só o mínimo de respeito. É o que dá pra ser.
Pedro ficou em silêncio por um segundo, antes de dizer:
— Obrigado por isso, mesmo.
Sorri sozinho, enquanto caminho.
— O importante é que chegamos a um consenso. Tá tudo certo, Pedro. Pode voltar a curtir suas férias tranquilo.
Pedro deu uma última respirada e desligou.
Ao chegar na contabilidade, encontrei o portão fechado. Os colaboradores ainda estavam tirando hora de almoço, aproveitando os minutos extras que eu mesmo tinha liberado.
Toquei a campainha e esperei. Logo, Luana apareceu pra me atender. Veio toda preocupada, com aqueles olhos inchados de chorar.
Sem dizer nada, eu apenas abri os braços e a abracei. Um abraço sincero, daqueles que diziam tudo o que precisava ser dito.
— Tá tudo bem agora — falei com a voz calma. — Pedro também já está ciente. Tá tudo sob controle.
Ela assentiu, respirou fundo e me levou direto até a sala do Pedro. Chegando lá, apontou para a porta.
— Olha isso aqui.
Na dobradiça, a madeira estava rachada. O impacto que Manuel causou ao entrar com tudo tinha deixado sua marca ali — literalmente.
Como bom funcionário que sou, não pensei duas vezes: tirei foto da porta e do monitor que ainda estava no chão. Mandei tudo direto pro WhatsApp do Pedro, dizendo que o filho dele havia feito aquilo.
A resposta veio em segundos:
Pedro: Manuel vai arcar com os prejuízos.
Sorri. Chamei a Luana e pedi que ela acionasse a senhora da limpeza para cuidar da sala.
Aos poucos, os colaboradores foram voltando das suas horas de almoço. E, como era de se esperar, o ti-ti-ti já corria solto pelos corredores da contabilidade. Cochichos, olhares atravessados... Não incomodava só a mim — Luana também estava visivelmente irritada.
— Eu vou falar com eles — ela disse, se levantando.
Pensei por um instante. Eu era o assunto da vez, talvez não fosse o melhor a tomar a frente sozinho. Mas também não podia deixá-la lidar com tudo. Fui com ela.
Chegamos no setor principal e ela pediu a atenção de todos e foi direta, com um tom firme que até eu respeitei:
— Gente, como vocês viram, o Manuel esteve aqui hoje. Ele entrou transtornado, quebrou o monitor, rachou a porta... mas graças ao Renato, tudo foi resolvido. Está sob controle. Então, por favor, ignorem qualquer coisa que ele tenha dito. Ele não estava bem, estava fora de si.
O silêncio reinou por um segundo. E então, eu resolvi tomar a palavra:
— Eu acho que não precisa mais fazer rodeios. Não é segredo pra ninguém aqui que eu e Manuel nos relacionávamos. Ele era meu namorado. E quando entrei aqui, foi ele quem me treinou, me passou tudo. Mas a gente terminou. E ele não aceita o fato de que o pai dele, Pedro, continua confiando em mim, mantendo meu nome entre os funcionários da empresa.
Respirei fundo e continuei, olhando nos olhos de cada um.
— Tudo que vocês ouviram da boca dele hoje foi movido por mágoa, por confusão emocional. Se alguém tiver alguma dúvida, qualquer mesmo, pode vir falar diretamente comigo. Poupem a Luana. E, se preferirem, falem com o Pedro — ele estará de volta em alguns dias.
Fechei com um sorriso irônico e um puxão de orelha leve:
— Agora, bora trabalhar, minha gente. Porque fofoca não é de Deus, e muito menos da contabilidade.
Alguns riram, outros ficaram sem reação. Mas o recado foi dado. Com firmeza e clareza. Era hora de virar a página e seguir.
A hora de ir pra faculdade foi se aproximando e, diferente dos outros dias, eu não saí meia hora antes como de costume. Fiquei com a Luana até o fim do expediente. Era o mínimo que eu podia fazer depois de tudo. Ela havia me protegido, evitado que eu levasse um soco na cara, e segurou as pontas comigo quando tudo parecia sair do controle.
Cheguei atrasado. Só percebi que nem tinha avisado quando vi a cara da Drielle ao me ver entrando na sala. Ela colocou as mãos na cintura e despejou um sermão sem pausa:
— Ah não, Renato! Você some, não manda mensagem, e chega atrasado desse jeito? Fiquei mofando na entrada! Eu já tava achando que tinha acontecido alguma coisa!
— Aconteceu mesmo... — respondi, num tom cansado. — Tive um dia difícil.
Ela mudou na hora. Tirou a mão da cintura, a expressão endurecida virou preocupação.
— Foi mal... — disse ela, mais suave. — Me conta depois, tá?
A noite seguiu normalmente. Teoria, discussões em grupo, aquele professor que enrolava horrores e ninguém sabia como ainda estava ali dando aula. Mesmo com a cabeça a mil, consegui me concentrar. A presença da Drielle ajudava. Era minha âncora naquele lugar.
No fim da aula, quando eu já me preparava pra ir embora, Luciano — um dos colegas mais expansivos do curso — se aproximou com um sorriso no rosto:
— Ei! Eu, Erick, Claudio, Cauã e mais uma galera vamos pro bar ali perto. Hoje é noite de karaokê, e tá todo mundo indo. Vocês topam?
— Valeu o convite, mas não vai dar. Tenho que acordar cedo amanhã pra trabalhar — respondi, automático.
— Ah, vamos, Renato! — Drielle praticamente me empurrou. — É a nossa chance de enturmar com o pessoal da sala! A gente vive reclamando que ninguém fala com a gente. Vamos só por um tempo.
Olhei pra ela. Ela já tava puxando a bolsinha pra ir ao banheiro retocar a maquiagem. A batalha já estava perdida.
Minutos depois, estávamos a caminho do bar. O lugar estava hiper lotado — o que fazia sentido, já que era fim de semana e o bar ficava bem próximo da universidade. O som do karaokê já ecoava na rua, junto com risadas e conversas.
A galera do nosso curso havia juntado mesas, tentando deixar todo mundo reunido. A única mulher da turma presente, além da Drielle, era a Kellen. O restante era formado por rostos já conhecidos de vista, mas os que eu sabia o nome além do Cauã, eram o Erick, Gleidson, e o Claudio.
Cauã era, sem exagero, o mais gato da sala. Um galã disfarçado de estudante de contabilidade. Moreno claro, cabelo castanho escuro sempre bem cortado, aquele fade que parecia ter sido feito no capricho horas antes. A barba por fazer deixava ele ainda mais charmoso, e os olhos — castanhos, quase mel quando batiam luz — pareciam sempre observar tudo com uma calma calculada. O corpo? Não precisava nem de camiseta apertada pra mostrar que ele malhava. Tinha ombros largos, braços definidos e um sorriso tímido que aparecia de canto de boca, como se nem ele soubesse o próprio efeito. A voz era grave, e quando ele falava — o pouco que falava — todo mundo prestava atenção. Um galã low profile, discreto, mas magnético.
Já Erick era outro tipo de presença. Negro, de pele impecável, andava como se estivesse numa passarela. Ele me incomodava. Não que ele fizesse nada demais, na verdade, ele nem dava sinais óbvios de que era gay. Mas eu cismei com ele desde o primeiro dia de aula. Ele era observador demais, os olhares que ele lançava me incomodavam.
Eram discretos. Nada escancarado. Mas vinham com frequência. Aqueles olhares que ele jogava de canto, que desviava quando eu flagrava. Me incomodava, sim. A ponto de eu evitar contato visual com ele sempre que possível.
Fiquei no meu canto, rindo das palhaçadas do Luciano, e bebendo devagar. Até que Drielle cismou de cantar uma música no karaokê.
— Vai ser “Sorriso Maroto”! — anunciou, como se aquilo fosse revolucionar o bar inteiro.
— Não acredito que você vai fazer isso! — falei, meio rindo, meio querendo me esconder debaixo da mesa.
Mas ela foi. Corajosa, como sempre. Subiu no palco improvisado e começou a cantar. E, pra minha surpresa... até que não foi ruim. Todo mundo entrou na vibe, a galera aplaudia e cantava junto.
Foi nesse clima que Erick se aproximou.
— Sua amiga Drielle é uma figura — ele disse, com um sorriso lateral, parando ao meu lado.
— Sim... sim... — respondi, ajeitando na cadeira, meio sem graça. — Até que não canta mal, né?
Ele deu uma risadinha e me olhou de um jeito que me deixou mais inquieto do que eu gostaria.
— Você vem sempre pra esse bar?
Desviei o olhar.
— Não... é a primeira vez. Luciano que nos chamou.
— Primeira vez minha também — respondeu, ainda me observando.
Como não tinha muito assunto com o Erick, puxei conversa:
— E aí, tá curtindo o curso?
— O curso é da hora — ele respondeu, meio animado. — Mas vou te falar... no começo não estava botando muita fé na galera, não. Depois que me enturmei, paguei a língua. O pessoal é top.
— Cara, a minha primeira interação com esse povo está sendo hoje . Lá no curso eu só troco ideia com a Drielle e depois já vazo pra casa.
— A Drielle é legal, mas você devia expandir seu círculo social.
— Eu sei... mas sei lá, fico meio sem graça. Parece que o pessoal já tem os grupinhos deles, sabe?
— Isso é verdade.
Mas mudando de assunto... o que você faz da vida? — perguntei, tentando mudar o foco.
— Trabalho no RH de um mercado. Médio porte, sabe? Aquele caos gostoso de lidar com gente todo dia.
— Ah, bacana — comentei, realmente interessado agora.
— E você?— Ele quis saber.
— Trabalho numa contabilidade — respondi, tentando não parecer importante demais, nem modesto demais. — Fico meio que na administração geral... estou cobrindo a ausência do dono, que está de férias.
Ele assentiu com um sorriso de canto.
— Legal. Então você é dos nossos: rala de segunda a sábado também.
— Infelizmente — comentei, dando um gole na bebida e encarando Drielle, que já voltava da apresentação toda feliz, sob aplausos mandando beijo pro público.
Erick olhou pra ela, depois voltou o olhar pra mim.
— Vocês dois são bem próximos, né?
— Sim...
— Dá pra ver. Vocês são unidos. Mas... — ele deu uma pausa — você é sempre assim? Sério demais?
Antes que eu respondesse, Drielle apareceu atrás de nós, ouvindo a frase no meio.
— Renato? Sério? A gente tá falando do mesmo Renato?
Erick riu, olhando para ela.
— Pelo menos no curso é. Sempre quieto, centrado.
— No curso eu tô focado. Mas vira e mexe a gente troca olhares, conversa por código — comentei, apontando discretamente pra Drielle. — Só que aos poucos eu me solto. Me revelo pra quem se interessa de verdade em me conhecer.
Erick assentiu, com um leve sorriso.
—Eu tenho interesse em conhecer. Acho que a gente se daria bem.
— Em que sentido? — perguntei, meio desconfiado.
— Em todos — ele respondeu, sem hesitar.
— Ser específico ajuda muito nessa hora.
Ele deu um passo mais perto, riu e falou ao pé do meu ouvido, quase sussurrando:
— Renato, sou entendido. E sei que você também… Mas não espalha.
Fiquei em silêncio. Por dentro, um misto de confirmação e desconforto. Eu sabia. Sempre soube. Mas ouvir da boca dele foi outra coisa. Não sabia o que responder. Só consegui sorrir, meio sem jeito.
— Ah... legal — murmurei, tentando manter o tom casual.
Antes que eu pensasse em qualquer outra reação, Drielle surgiu como uma bênção.
— Vamos ali no banheiro rapidinho — disse, já me puxando pelo braço, sem nem me dar tempo de recusar.
Enquanto caminhávamos entre as mesas, ela me lançava olhares curiosos e inquietos. Até que não aguentou:
— Já pode me falar o que ele falou no seu ouvido, querido?
A curiosidade dela me fez rir.
— Quer mesmo saber?
— Claro!
— Ele me chamou de gostoso e disse que tá afim de sair comigo.
Ela arregalou os olhos, abismada.
— Sério?!
Ri ainda mais e balancei a cabeça.
— Claro que não, né! Só confirmou o que eu já suspeitava... Ele é gay.
— Como pode? — ela perguntou, ainda surpresa. — Juro que eu nunca imaginei.
— Drielle de Deus... nem todo gay é afeminado. Se você visse meus ex, jamais diria que ficaram comigo.
Ela me olhou por um segundo, depois soltou uma risada gostosa.
— Acho que eu preciso rever meus conceitos.
— E eu preciso de uma bebida depois dessa revelação.
— Eu também — ela disse, me puxando pro bar com um sorriso no rosto.
— Ué, e o banheiro? Você não tava apertada?
Ela fez uma careta divertida e confessou, rindo:
— Que nada! Eu só queria sair dali e saber o que o Erick te disse no ouvido. Tava me matando de curiosidade!
Eu ri, balançando a cabeça.
— Você é uma figura, sabia?
Rimos juntos, e então ela me puxou de novo.
— Então bora pegar logo essas cervejas antes que aquela galera acabe com tudo!
Quando voltamos pra nossa mesa, Erick já tinha voltado pro lugar dele. Sentamos e retomamos a conversa com o resto da galera. Pela primeira vez em semanas, eu estava ali, presente de verdade. Rindo, trocando ideia, conhecendo melhor o pessoal. E pra minha surpresa... eu tava curtindo. Eles pareciam ser legais. Gente simples, de boa.
Na hora de ir embora, Cauã se levantou e perguntou se a gente queria carona. Drielle olhou pra mim, esperando minha resposta. Agradeci, mas recusei — meu ônibus passava com frequência e não havia necessidade. Falei pra Drielle aceitar, mas ela também recusou.
Assim que o Cauã se despediu e foi embora, ela me olhou indignada.
— Você é um idiota, sabia?
— Oxi! O que foi agora?
— Eu estou afim do boy, criatura! Mas claro que eu não ia aceitar ir sozinha, né? Ia parecer o quê? Que sou fácil?
— Ué, era só entrar e ir com o ele. Porque não fez isso?
— Porque ele ofereceu carona pra NÓS dois. Se você tivesse aceitado, eu ia junto na moral. Agora parece que esnobei o Cauã.
Eu ri, balançando a cabeça.
— Meu Deus, Drielle...
— Cala a boca, você estragou tudo — disse, empurrando meu ombro com leveza e esboçando um sorriso.
Tive que ficar no ponto esperando o ônibus da Drielle passar primeiro, pra depois pegar o meu. Ela ficou do meu lado com cara de poucos amigos.
— Desculpa aí pelo vacilo com o Cauã — falei, ainda meio sem graça.
— Relaxa — ela respondeu, dando de ombros. — Eu conheço o ser chamado homem. Se ele realmente tiver afim, vai dar um jeito de aparecer de novo. Homem que quer, insiste.
Pensei por um segundo e soltei:
— Tá... e se ele não estiver afim de você? Se ele só quis ser simpático e educado ao oferecer a carona?
Ela virou o pescoço devagar, me encarando com cara de deboche.
— Você tá me dizendo que eu sou pouca coisa para aquele gato gostoso?
Caí na risada.
— Claro que não! Só tô apresentando outras hipóteses possíveis.
Ela cruzou os braços e rebateu na mesma hora:
— Então deixa eu apresentar uma hipótese também: dentro da semana que vem, Erick vai estar usando e provando desse seu corpinho aí.
— Nem brinca! — falei, rindo e colocando a mão no peito.
Ela sorriu maliciosa, e o ônibus dela apareceu bem na hora. Antes de subir, se virou pra mim com um aceno dramático.
— Me avisa quando for marcar com ele, que eu quero escolher o look.
— Tchau, Drielle! — falei, ainda rindo, enquanto ela subia no ônibus gargalhando.
Fiquei ali ainda rindo sozinho no ponto, sacudindo a cabeça, lembrando das loucuras da Drielle. Aquela noite tinha sido doida, mas de um jeito bom.
Pouco tempo depois, meu ônibus passou. Entrei, sentei perto da janela e deixei o vento bater no rosto. Pela primeira vez em semanas, senti que as coisas estavam começando a entrar nos eixos. Talvez eu estivesse, enfim, me permitindo viver de novo.
Era domingo de manhã quando Jefferson veio me buscar aqui em casa. No carro já estavam Gil, Breno e Dinei. Entrei sorrindo e brinquei:
— Pronto pra tomar uma corzinha?
— Lógico, amor! Hoje você vai ver a Pequena Sereia brasileira — respondeu Gil, animado.
Dinei não deixou passar:
— Você tá mais pra Úrsula, Gil.
Ri com o comentário e seguimos viagem ao som de música eletrônica, que Gil colocou no último volume — talvez pra abafar as alfinetadas de Dinei. Eu sabia que, desde o nosso último encontro, os dois não andavam nada bem. As verdades que Gil tinha jogado ainda estavam entaladas.
O destino era o Aldeia, um resort aqui da região, cheio de piscinas de todos os tipos e tamanhos. A mais disputada era a piscina com ondas — e foi lá que combinamos de encontrar Felipe, que chegaria por volta das dez. Quando estivesse no local, ele me ligaria.
Assim que chegamos, pagamos a entrada. Não era barato, mas dava pra considerar justo. Só depois descobrimos que, comprando pelo site, era mais barato. Já era tarde demais.
Antes de qualquer coisa, fomos direto para o vestiário trocar de roupa. Assim que entramos, Gil não perdeu tempo: apontou discretamente para o box e indicou que Jefferson deveria se trocar lá dentro. Ao mesmo tempo, lançou um olhar na direção de Dinei, deixando claro que não queria que ele visse Jefferson nu — e tinha seus motivos pra isso.
Jefferson entendeu, soltou um resmungo e foi. Nós nos trocamos ali mesmo. Dava pra notar que Dinei ficou um pouco desconfortável, ciente de que estava sendo observado por Gil.
Eu coloquei uma sunga azul clara, modelo slim. Gil vestia uma parecida com a minha, mas branca, com estampa de folhas tropicais. Breno optou por uma preta mais básica, e Dinei também, só que a dele tinha três listras azuis na lateral.
Quando Jefferson saiu do box com uma sunga vermelha, não teve jeito — todos olhamos. Dinei ficou paralisado. Eu mesmo fiquei de queixo caído.
— Com todo respeito... — falei, virando pra Gil — não tinha um short? Tinha que ser logo uma sunga... e vermelha? Não tem como não olhar, amigo.
Até Jefferson caiu na risada. Gil, com seu jeito todo debochado, respondeu:
— Vermelho de amor… e de “proibido avançar”.
Depois disso, guardamos nossos pertences em um armário, escolhemos uma mesa e compramos cerveja. Começamos a beber ali mesmo, antes de colocar o pé na água. Gil, Breno e Dinei logo correram pra piscina, enquanto eu fiquei um pouco com Jefferson, que aproveitou pra desabafar:
— É... seu amigo tá foda. Tá com uns ciúmes meio exagerado, acredita? Não queria nem que eu desse carona para os seus amigos por causa do Dinei. Tá complicado.
Olhei pra ele e disse:
— Cara, é que tem rolado umas paradas que não dá pra deixar passar em relação ao Dinei. Vai por mim.
— Tipo o quê? — ele perguntou.
— Fala com o Breno depois, com calma. Ele vai te explicar direitinho, aí você vai entender.
Jefferson assentiu, mas acrescentou:
— Mas não é só por causa dele, sabe? No bar mesmo, ele já fica daquele jeito...
Antes que eu pudesse responder, Gil gritou da piscina:
— Bora, entra logo!
Virei para Jefferson:
— Vamos? Depois a gente continua essa conversa.
Corremos e pulamos direto na água. Estava fria no começo, mas logo o corpo acostumou.
Na piscina, cada casal estava próximo, mas nada de agarração. Era mais na brincadeira — a gente mergulhava, jogava água um no outro, ria à toa. Até brincamos de lutinha, em que um sobe nas costas do outro pra tentar derrubar a dupla adversária. Igualzinho a como fizemos naquela viagem para Angra, no carnaval.
O clima era de alegria, sol, zoeira e cerveja gelada... mas eu notava.
Notava que havia uma tensão no ar entre Gil e Dinei. Eles não se ignoravam completamente, falavam o necessário. As respostas eram sempre curtas, secas, quase automáticas. Dinei ainda tentava puxar assunto, criar alguma interação, mas Gil mantinha distância — recuava com um sorriso contido, quase forçado, como quem não quer dar espaço para uma aproximação maior.
Acho que o Jefferson também percebeu o clima entre Gil e Dinei. Chamou Gil num canto, e os dois saíram da piscina para conversar na mesa.
Com a saída deles, Breno soltou:
— Acho que vai rolar uma DR ali.
— Mas por quê? — perguntou Dinei, como se não estivesse entendendo nada.
— Ué, por causa desse clima todo errado que vocês dois tão criando. Ou você realmente não percebeu que o Gil tá te evitando? — comentei, direto.
— Lógico que percebi, Renato. Só que não me incomoda. E acho besteira o Jefferson deixar isso afetar o dia dele. Eu, sinceramente, não estou nem aí com isso.
— Mas o clima fica pesado pra quem tá por perto — rebateu Breno, com sinceridade.
— Exatamente. É uma bobagem vocês ficarem se estranhando. Aqui não é o lugar, nem a hora pra isso — falei, tentando encerrar o assunto.
Dinei resmungou, meio impaciente:
— O Gil que tá com essa palhaçada por causa do boyzinho dele...
— Dinei, ele tem os motivos dele. E nunca fez questão de esconder quais são — retruquei, firme.
Breno então levantou as mãos como quem sai de cena:
— Eu vou ficar na minha... até porque nem peguei essa fase em que você ficou com o Manuel.
Dinei balançou a cabeça, com um sorriso enviesado, e soltou:
— É bom mesmo você ficar quieto e continuar neutro nessa história, Breno. Mas ó... se o Gil já tá desse jeito agora, imagina quando o Felipe aparecer? Aí sim ele vai surtar.
O nome veio carregado de intenção. Dito assim, solto, mas na maldade. Ele sabia exatamente o que estava fazendo.
— Ou não — rebati, seco, sem dar espaço pra ele crescer em cima disso.
Breno, percebendo o rumo da conversa, tentou cortar o clima:
— Amor... o cara nem chegou e você já está falando dele.
Aproveitei o momento e perguntei:
— Exatamente! Mas e vocês dois? Como estão? Tá tudo certo entre vocês?
Breno respondeu:
— A gente conversou bastante. Pra ser sincero, teve um momento que eu achei que não ia mais rolar.
— Sério? — perguntei.
— Sério. Dinei cogitou abrir o relacionamento por causa de uma foda. Mas depois de muita conversa ele botou a cabeça no lugar e decidiu que não valia a pena.
Dinei completou:
— A única coisa que eu não abri mão foi da minha rede social. Até dei uma maneirada... agora só posto umas duas vezes por semana.
— Que bom que chegaram num acordo. Já é um começo — comentei.
Breno não resistiu à provocação, rindo:
— Agora ele tá meio enciumado, porque tem gente chamando ele no direct, querendo meu contato... perguntando se eu tenho perfil.
Fez uma pausa e completou com malícia:
— Foi só por isso que ele diminuiu o ritmo das postagens porque começaram a se interessar por mim. Agora, vídeo da gente transando virou coisa rara.
Dinei revirou os olhos, mas não negou. Só balançou a cabeça, fingindo indiferença e Breno finalizou:
— Mas ele entendeu que o que não é bom pra ele, também não é bom pra mim. E vice-versa.
Deixei os dois conversando e fui em direção à mesa. Quando me aproximei, ouvi Jefferson dizer:
— Ou é isso... ou vamos embora.
Gil respondeu, firme:
— Então vamos embora mesmo.
Jefferson nem olhou pra trás. Disse apenas:
— Conversa com seu amigo aí. Eu vou dar um mergulho pra esfriar a cabeça, porque tá foda.
Assim que Gil me viu, comecei logo:
— Segura tua onda, Gil. Se for por causa desse ciúme bobo, você vai acabar perdendo ele.
Gil cruzou os braços, respirou fundo e disparou:
— Renato, o filho da puta do Dinei tá do lado do namorado e ainda assim fica olhando pro Jefferson!
Aproveitei a deixa e provoquei:
— Amigo, a pergunta é: seu macho corresponde? Dinei avança... ou só olha? Porque olhar não é pecado, né? Ou vai me dizer que você só tem olhos pro Jefferson? Eu mesmo olhei pra ele no vestiário com aquela sunga vermelha. E você não ficou com raiva de mim.
Gil riu curto e respondeu:
— Ele nem é doido de avançar. Eu dou na cara dele. Eu confio em você, Renato, mas com Dinei é diferente. Depois que ele pegou o Manuel... aí fica difícil confiar. E outra: não é só o olhar. No olhar dele tem desejo. Ele mesmo já admitiu que se fosse em outra época, onde se ele e Jefferson estivessem solteiros, ele ia dar em cima.
— Olha, eu conversei com eles agora há pouco. Eles disseram que estão bem, que se acertaram. Dinei viu que estava equivocado nessa ideia de abrir o relacionamento.
Gil me olhou, mais calmo:
— Sério mesmo?
— Sério. Eles me disseram. Dinei percebeu que ia acabar perdendo o Breno se insistisse nisso.
— Fico feliz pelo Breno que estava perdido no meio daquela confusão.
— Agora bora voltar pra piscina, sereia?
Ele riu, mais leve:
— Tá bom...
Andando em direção a piscina onde os outros estavam eu disse:
— Mas, por favor, facilita nossa vinda aqui. Fica de boa com o Dinei.
Voltamos para a piscina. E Gil, como sempre direto e sem filtro, chegou dizendo:
— Dinei, desculpa se fui grosso... mas só pra deixar claro: pedir desculpa não quer dizer que você pode ficar olhando meu homem. Aliás, se for pra olhar a mala dele, pelo menos seja discreto.
Dinei franziu a testa, já bufando:
— Gil, você ainda tá nessa? Cara, desencana! Nem falei direito com o Jefferson. E outra, meu love tá aqui, lembra?
Jefferson, que estava de boa na beira da piscina, deu razão a ele:
— Gil, nisso o rapaz tá certo.
Gil então olhou em volta, encarou o grupo, e mandou com um sorriso:
— Mas não custa nada lembrar.
A movimentação na piscina seguiu, mas de repente Breno franziu os olhos, olhando em direção à entrada da área principal.
— Aquele lá não é o Felipe?
Olhei na direção que ele apontava e vi, no meio da multidão, um vulto conhecido tentando se localizar. Acenei com os braços e fui ao encontro dele, abrindo caminho entre os banhistas.
— Renato! Tô te ligando horrores e você nada de atender!
Na mesma hora me dei conta.
— Putz! Meu celular tá no armário. Esqueci completamente. Mas o que importa é que você chegou!
Ele bufou, mas riu logo em seguida.
— Por pouco eu não fui embora.
— Relaxa, agora vai ser só diversão. Vai lá se trocar, a gente tá na mesa perto da piscina com ondas.
Enquanto Felipe seguia pro vestiário, a galera saiu da água e foi se reunir na mesa. Todo mundo já mais tranquilo, cerveja em mãos, sol começando a dar aquela trégua.
Gil, claro, soltou:
— Cadê a Felipa?
— Foi se trocar — respondi, rindo do apelido que ele mesmo inventou.
Pouco tempo depois, Felipe apareceu de sunga azul escuro, todo sorridente, bronzeado e já no clima. Cumprimentou um por um com aquele jeitinho dele e se sentou ao nosso lado.
— Só pra vocês saberem — começou ele — eu quase fui embora. Tentei ligar pra esse aqui várias vezes e ele sumiu!
— A culpa foi do armário! — me defendi, levantando a mão. — Mas agora ninguém some mais.
Assim que Felipe se sentou, aproveitei pra fazer as apresentações formais — ou quase.
— Felipe, os meus amigos você já conhece. A única novidade aqui é o Jefferson. Esse moreno coroa aqui, Você deve ter visto ele no casamento do Ricardo — falei, apontando — mas já aviso logo: ele é comprometido. O namorado dele atende pelo nome de Gil… e é ciumento.
Todos riram, inclusive Gil, que já estava com a latinha na mão fazendo pose de diva ofendida.
Jefferson estendeu a mão para Felipe e disse, simpático:
— Fica à vontade, viu, Felipe.
Mas Dinei, sempre com aquela língua afiada, soltou:
— Só não fica tão à vontade assim... senão o Gil faz picadinho de você.
Gil não perdeu o timing:
— Meu amor, se eu não fiz picadinho de você, que é meu amigo, imagina se vou fazer dele. Pode ficar tranquilo, Felipe.
Felipe me olhou, meio surpreso, tentando entender o clima.
Aproveitei pra intervir:
— Gente, vamos com calma... se não, assustam o nosso convidado.
Gil foi mais incisivo, olhando direto pra Felipe:
— Não leva em conta o que o Dinei fala, tá? Ele gosta de causar.
Felipe riu, jogando os cabelos pro lado com aquele jeito exagerado que era só dele:
— Prometo me comportar... por enquanto.
Com Felipe ali, tudo ficou mais leve. A presença dele trazia uma energia boa, divertida, sem esforço. A gente ria, zoava, e o clima, que antes tinha uma tensãozinha pairando, foi ficando mais descontraído.
Em certo momento, Felipe levantou, ajeitou a sunga com aquele ar dramático de sempre e anunciou:
— O papo tá ótimo, mas eu preciso dar uma volta pra ver o que esse lugar tem de bonito. Preciso admirar a paisagem e os homens. Alguém topa?
Todo mundo topou na hora. Jefferson aproveitou a deixa:
— Já podíamos aproveitar pra caçar um lugar para almoçar, né? Tô com fome faz tempo.
Saímos caminhando devagar, contornando a área das piscinas. Felipe, lógico, não conseguia passar reto por ninguém sem fazer um comentário. Era cada boy escândalo que cruzava nosso caminho. Era cada filé com uma mala que deixava a gente ovulando sem vergonha nenhuma.
— Aquele ali... ó! Carinha de safado. Total meu tipo. Olha o jeitinho de andar — dizia, apontando discretamente.
Até Gil se arriscava a soltar algum comentário — nada muito ousado, só uns “bonitinho ele, né?” ou “aquele ali tem presença” — tudo com moderação, por causa do Jefferson que andava ao lado rindo dos comentarios. Já Dinei optou por ficar em silêncio. Observava, mas não comentava nada.
Eu comecei a notar que os alvos do Felipe seguiam o mesmo padrão: morenos, corpo definido, tatuagem no braço... basicamente variações de André e Naldo. Era o “Felipeverso” ganhando território.
— Você tem um gosto muito específico — comentei, rindo.
— E você não? — ele retrucou de imediato.
— Eu sou mais eclético. Já novinho, coroa, magro, forte... tem que me atrair de uma forma.
Dinei, que vinha ouvindo quieto, soltou com um sorrisinho maldoso:
— Ou seja... basta ter pau.
Todos caíram na risada, e eu entrei na onda:
— Meu amor, não é só de pica que vive um gay. De vez em quando eu gosto de um cuzinho. É raro, mas acontece.
— Deus que me livre — interrompeu Gil, fazendo careta. — Nunca me vi comendo! Sou passiva assumida, com muito orgulho.
Felipe entrou na conversa logo em seguida:
— Gil, então estamos no mesmo time. Nunca fui ativo, nem tenho interesse. Zero vontade.
Breno aproveitou o embalo pra contar também:
— Eu já fui passivo, mas não é minha praia. Sou ativo e, ó — olhou pra Dinei — Dinei não reclama, né amor?
Dinei apenas sorriu, mas com aquele ar de quem confirma sem precisar dizer nada.
Jefferson, falou de si:
— Eu gosto é de um buraco, minha gente... seja um cuzinho ou uma buceta, acho tudo uma delícia. Estou com Gil, mas em outras época uma buceta molhadinha me deixava doido.
Olho para Gil que sorri meio sem jeito e não diz mais nada.
Estávamos procurando um restaurante quando meu olhar foi puxado por um movimento mais à frente. Automaticamente parei de andar e, sem pensar, apontei discretamente com o queixo:
— Gente... olha aquilo ali.
Ele caminhava em direção ao bar, meio distraído, como se nem soubesse o impacto que causava. Alto, do tipo que se destaca até em multidão. Branco, mas com a pele levemente corada do sol. Usava óculos escuro e uma sunga preta simples, mas o que chamava atenção era o conjunto: cavanhaque bem cuidado, pelos espalhados pelo corpo — no peito, na barriga, descendo até desaparecer na cintura.
O braço esquerdo era forte, definido, e ali dava pra ver uma pequena tatuagem em volta, Uma frase discreta, não consegui ler, mas deu vontade de chegar mais perto.
Tinha cara de poucos amigos, mas de muitos pecados.
— Eita — sussurrou Felipe, se inclinando na minha direção. — Esse aí tem energia de quem não fala muito... só pega pela cintura e resolve no silêncio.
— Cara de onde vocês tiram isso! — Disse Jefferson rindo das coisas que Felipe dizia.
Depois de rodar bastante, demos sorte de encontrar um restaurante com buffet de churrasco. Ninguém pensou duas vezes: nos servimos e sentamos em uma mesa grande, debaixo de uma área coberta. O papo estava bom, a comida melhor ainda.
Enquanto cortava um pedaço de carne, Breno soltou:
— O próximo evento que a gente fizer tem que ser lá em casa... Ou melhor, na casa que eu e Dinei estamos pensando em alugar.
— Pô, aí sim! — disse Jefferson, animado.
— Finalmente, né amores? — brincou Gil, dando um gole no refrigerante.
Dinei só sorriu, um pouco tímido, e disse:
— Depois daquela conversa que eu e o Breno tivemos… a gente achou que esse era o momento certo para tomar essa decisão.
Breno completou, todo sereno:
— A gente já tem uma casa em mente. Mas antes de qualquer coisa, precisamos conversar com os nossos pais. Não dá pra sair assim do nada, né?
Depois do almoço, cada casal foi se dispersando naturalmente, indo pra um canto diferente do resort. Gil e Jefferson foram juntos para uma área mais reservada do resort. Breno e Dinei sumiram pela parte de trás da piscina de pedras, talvez procurando um pouco de paz longe dos olhares alheios. Todo mundo parecia querer um momento a sós, só curtindo o lugar e o clima.
Quando eu e Felipe voltamos para a piscina de onda, sentamos à mesa, só nós dois, quando joguei a pergunta sem rodeios:
— Agora fale: você e o Manuel ficaram ou não?
Felipe me olhou na hora, com a expressão de quem já tinha sido pego.
— Ele te contou?
— Não, menino! Se ele tivesse contado, eu não estaria te perguntando, né?!
Ele riu, envergonhado, abaixando um pouco a cabeça.
— Sim… ficamos. Ele me levou numa casa que ele chama de "casa de foda".
— Eu sei onde é. Inclusive, já morei lá por um tempo — comentei, tentando manter a naturalidade.
Felipe então começou a contar com mais detalhes. Disse que eles ficaram na noite anterior, que Manuel era um gostoso, que ele curtiu muito estar com ele… mas deixou claro que não achava que aquilo fosse se repetir.
— O meu lance é o André. De verdade. Eu só tô com medo disso vazar e ele descobrir.
Eu sabia que essa possibilidade existia, e muito. Porque Manuel não era exatamente um poço de discrição — e se ele falasse pro Naldo, bastava uma noite mal dormida pra isso chegar até o André. Mas, em vez de alimentar a paranoia de Felipe, perguntei direto:
— Mas você pediu sigilo pro Manuel?
— Pedi sim — respondeu, um pouco mais sério. — Agora é torcer pra ele manter em off.
Respirei fundo, mas antes que eu dissesse algo, Felipe foi além:
— Ah! Esqueci de te falar… O Naldo me chamou pra sair com ele e o Manuel hoje à noite. Ele mesmo me disse que o Manuel vai estar com ele.
Na hora, tudo fez sentido pra mim. Juntei os pontos: Então quer dizer que o Manuel não veio para Volta Redonda preocupado com quem estaria no lugar do pai coisa nenhuma. Veio fazer uma visitinha pro Naldo… e aproveitou pra fazer aquele escândalo todo.
Esse pensamento me atravessou de repente, enquanto eu observava Felipe ali, todo entregue ao momento, mas ainda carregando nas costas o peso de uma escolha que parecia pequena, mas estava crescendo dentro dele.
— Sério? — perguntei, tentando disfarçar o incômodo.
Felipe assentiu:
— Sim… Naldo chamou o Manuel pra vir pra cá e ele teve a cara de pau de falar que gostou de ter fodido o cara.
Eu respirei fundo e disse:
— Então, se o Manuel está aqui... é porque aceitou o convite.
Felipe deu uma risadinha leve, meio cúmplice:
— Também, né, Renato… Naldo tem pegada. Dá uma canseira na gente.
Soltei um meio sorriso.
— Eu sei… o Gil já passou por ali.
Felipe se aproximou um pouco mais, como quem confessa algo:
— Por isso que eu não me importo de me envolver com os dois, sabe? De um lado tem o Naldo, que é um animal. Do outro, tem o André… por quem eu tenho um afeto. Às vezes ele me corresponde… em outras, me trata igual o Naldo.
— Mas, Felipe… e se de repente o André descobre que você ficou com Manuel? O que você acha que ele faria?
Felipe nem hesitou:
— Eu não sei ao certo… mas tenho quase certeza de que ele me excluiria de tudo. Da vida dele, da cama, dos rolês, dos planos. E eu não desejo isso. Não mesmo.
Respirei fundo antes de falar, tentando manter meu tom firme, mas acolhedor:
— Olha, pode parecer loucura o que eu vou te dizer, mas eu acho isso tudo muito injusto com você. O cara tem uma namorada... e tem você. E ainda por cima te divide com o Naldo. Te quer ali, disponível, pronto, sem reclamar. Vocês não têm nada sério, então sinceramente, eu acho que sim, você deveria poder ficar com quem quiser, sem culpa.
Felipe ficou em silêncio por alguns segundos, como se estivesse tentando processar o que ouviu. Depois, com a voz mais baixa, confessou:
— Mas é aí que tá, meu amigo. Eu sinto culpa. Com o Manuel foi exatamente isso. Foi bom, foi gostoso, ele foi super carinhoso... mas depois que eu fui embora, fiquei me sentindo mal. Como se eu tivesse traído alguém. Mesmo não tendo ninguém oficialmente.
— Mas você não traiu, Felipe — rebati com calma. — Você só tá tentando viver… e se entender no meio disso tudo. O erro não é seu. O problema é quando a gente aceita uma regra que só vale pra um lado.
Ele assentiu, ainda pensativo, mexendo na latinha quase vazia sobre a mesa. Pela primeira vez no dia, Felipe parecia mais quieto — não apagado, mas introspectivo. E eu respeitei esse silêncio. Até que soltou algo que me pegou totalmente desprevenido.
— Mas tem uma coisa que eu nunca te falei sobre o André… que, sinceramente, até hoje me deixa confuso.
— O quê? — perguntei, curioso.
— Ao mesmo tempo que ele parece desapegado de mim… como se estivesse pouco se lixando, ele também demonstra que se importa. De um dele, de um jeito estranho, mas se importa. Você acredita que ele já adiou o noivado por minha causa?
— O quê?! — perguntei, surpreso.
— É sério. Ele nunca me disse isso com todas as letras, mas o Naldo me contou. Disse até o dia e a hora que seria marcado o noivado.
Felipe respirou fundo antes de continuar.
— Quando eu soube da hipótese do noivado, fiquei puto. Nem fui na capoeira naquele dia. Ele me ligou depois, cobrando, perguntando por que eu tinha sumido. E eu falei. Disse que sabia de tudo e que, a partir dali, entre nós não ia mais rolar nada.
Fiquei em silêncio ouvindo. A intensidade nas palavras dele era nítida.
— No dia seguinte — continuou — ele adiou. Eu não sei o que ele falou, nem como explicou pra ela… só sei que a dita cuja terminou com ele por uns dias. Mas logo voltaram.
— Caramba, Felipe… — murmurei, ainda assimilando aquilo.
— É por isso que eu fico maluco. Porque eu sei que ele sente alguma coisa por mim. Pode ser bagunçado, torto, errado… mas ele sente. E eu também sinto. Mas não sei se isso basta.
Olhei pra Felipe e soltei, com sinceridade:
— Sabe... por mais que nossos romances sejam diferentes, eu me identifico muito com você. O lance do André, esse vai e vem, o apego, a confusão... eu vivi algo parecido com o Anderson.
Ele me olhou, curioso:
— Anderson era seu namorado, né?
— Era. Bissexual. E, olha, não foram poucas as vezes que eu fiquei puto só de saber que ele tava por aí com alguma mulher. Doía. Machucava mesmo.
— E vocês? — ele perguntou, mais direto. — Como estão agora?
— Não estamos mais juntos. Ele terminou comigo… e seguimos assim. Depois ele se arrependeu, pediu pra voltar, mas eu não quis. Não assim, com ele longe.
— Você não quis porque não acredita em relacionamento à distância? Ou tem mais coisa aí?
Suspirei, mexendo na borda da latinha.
— Tem mais coisa. Quando ele terminou, me disse que, dali pra frente, seríamos apenas primos. Aquilo me destruiu. Como o cara que é o amor da minha vida me reduz a só um primo na vida dele? Aquilo me fez repensar tudo. Eu percebi que vivia em função do nosso relacionamento. Aí decidi: não ia mais parar minha vida por ele. Agora eu tô vivendo. Do meu jeito.
Felipe ficou me encarando por um momento, meio admirado, meio solidário.
— Não acha isso perigoso demais?
— Sim. Falei isso pra ele esses dias. Tanto eu quanto ele estamos correndo esse risco. Mas não vou me anular por causa disso.
Ele assentiu, com um sorriso de canto.
— O amor nunca é simples, né?
— Nunca.
Nesse clima, ele levantou de repente e disse:
— Vem comigo. Quero ir até aquela ponte de madeira ali, que passa em cima daquela piscina que chamam de rio corrente.
— Bora.
Fomos caminhando, e o sol já dava sinais de cansaço, refletindo bonito na água. A ponte tinha uma vista linda do resort. Ali, rimos de novo, trocamos confidências e tiramos algumas selfies. Teve uma que ele tirou minha, de costas, virando o rosto pra trás.
Tive que ir no armário só pra pegar meu celular e postar essa foto no Instagram com a legenda:
"Olhando pra você só pra ver o que você vai dizer."
Voltamos pra piscina de ondas, e aos poucos os casais foram retornando também. Gil e Jefferson chegaram primeiro. Felipe, curioso como sempre, perguntou:
— E aí, onde vocês foram?
Gil respondeu sem filtro:
— Na sauna. E a gente ousou um pouco, namoramos sob os olhos de um estranho.
— Vocês o quê?! — perguntei, chocado.
Jefferson confirmou, meio envergonhado, mas rindo:
— A sauna é na parte alta do resort, quase não tinha ninguém. Aí o Gil deitou com a cabeça no meu colo... e o cara sacou que éramos um casal. Ele virou pra gente e disse que, se a gente quisesse, ele vigiava.
Gil completou, debochado:
— E o cara vigiou mesmo, enquanto eu e Jefferson se pegava! Só que no final, o bonitão levantou com um volume na sunga que parecia que tava escondendo um controle remoto. Disse que vinha gente chegando.
Olhei pro Jefferson e brinquei:
— Gosta mesmo de se exibir, né, safado?
— Pior que gosto… e já tô até com uma ideia aqui — ele soltou, rindo com aquele jeito maroto.
Foi então que Breno e Dinei chegaram, sorrindo, como se nada tivesse acontecido. Eu brinquei:
— Huuummm... olha os pombinhos voltando sincronizados!
Eles riram, e Breno foi logo soltando:
— Gente, esse lugar é enorme. A gente foi ali pras pedras… começamos a nos beijar e, bom, eu fiquei excitado. Não deu outra: acabamos no vestiário. Dentro de uma cabine.
Dinei riu e completou:
— Adrenalina com tesão. Os caras falando e o Breno entrando com todo o cuidado pra não fazer barulho.
Balancei a cabeça e falei:
— Vamos parar de falar disso, gente… porque eu sou puritano, né, Felipe?
Felipe gargalhou:
— Puritano… em voto de castidade!
Todo mundo caiu na risada, e Breno, ainda com o corpo meio encostado na borda da piscina, comentou:
— Olha… depois de tudo que a gente passou, acho que agora a gente tá vivendo uma espécie de lua de mel, viu? Né, amor?
Dinei assentiu com um sorriso tímido, como quem sabe que ainda tem muito a provar, mas topa seguir.
Sentindo o clima mais leve, tomei a liberdade de falar, com sinceridade:
— Esse passeio tá sendo bom em todos os sentidos. Vocês se acertaram com seus parceiros, e isso, por si só, já vale o dia. Relacionamento é isso: não é sobre não brigar, é sobre não desistir, mesmo no caos. É dar a mão no meio da turbulência e seguir. Fico feliz de ver vocês assim.
Mal terminei a frase, e o que veio em seguida caiu como um soco seco, no meio do peito.
Dinei, rindo debochado, disparou como quem quer bancar o espirituoso:
— Bonito o discurso, Renato… mas, convenhamos, você é a última pessoa pra falar de relacionamento. Nem com o Anderson deu certo. Nem com Manuel. É como dizem: quem escolhe demais, acaba sem nada.
E ainda teve a audácia de soltar uma gargalhada no final.
O silêncio foi imediato. Breno virou o rosto pra ele, perplexo:
— Que merda é essa, Dinei? Olha o que você tá falando! Tá maluco? Renato, me desculpa, de verdade.
— Não precisa, Breno — respondi, encarando Dinei, com uma calma que só o cansaço dá. — Ele só disse em voz alta o que provavelmente pensa há muito tempo. E sabe do pior? Em parte… ele tem razão.
Mas antes que eu pudesse continuar, Gil explodiu. Sem filtro. Sem amarras. E sem vontade de aliviar.
— Ah, então agora é dia de falar verdades, é isso? Ótimo. Deixa eu começar: quem é você, Dinei, pra julgar o Renato? Você ficou com o Manuel na cara dura, mesmo depois sabendo que ele estava envolvido com o Renato. Isso tem nome: trairagem. E sinceramente? Breno, me desculpa, mas você tá sendo um otário em continuar num relacionamento onde o cara cogita se vender por job e dinheiro. Pra mim você merece alguém melhor.
Dinei tentou abrir a boca, mas Gil não deixou.
— Cala a boca! Eu estou falando. Porque é isso sim, Dinei! Coloca na balança: você virou um prostituto virtual e nem se enxerga. Vive de conteúdo sensual, de cantada em DM, e ainda quer pagar de santo? Me poupe. Eu não confio em você nem com 20 metros de distância do Jefferson! Porque quando o assunto é homem, você não tem limite. Você não admira, você deseja. Você é uma piranha disfarçada de amigo!
A palavra ecoou como um estalo.
— E quer saber? Você tem um problema sério em ver os outros amando. Quando se meteu com o Manuel, bagunçou tudo. No caso do Renato, ainda bem que ele tinha o Anderson. No meu, o problema é que Jefferson simplesmente não dá moral pra você. E é só por isso que meu relacionamento ainda está de pé. Mas que fique claro: onde você pisa, o chão afunda. Então olha no espelho antes de falar merda sobre qualquer um aqui!
Felipe, constrangido, tentou intervir:
— Gente, calma… vamos respirar um pouco, por favor…
Mas ninguém o escutou. O clima já tinha azedado de vez.
Dinei, já com a voz alterada e o rosto vermelho, rebateu, cruzando os braços como quem se arma para o embate:
— Ah, agora todo mundo quer me julgar? Engraçado… se eu sou um prostituto virtual, então você, Gil, seria o quê? Um na vida real? Porque depois que começou a namorar o Jefferson, o seu “trabalho” ali virou só fachada. Ele é teu macho em troca de moradia e foda.
Gil arregalou os olhos, sentindo o sangue subir. O tom de voz dele aumentou num rompante:
— Eu tô cagando pro que você acha de mim, Dinei! C-A-G-A-N-D-O!
Mas Dinei não recuou. Pelo contrário, foi ainda mais fundo, com um tom debochado e venenoso:
Dinei escancarou, com a voz firme e um olhar cortante:
— Isso porque eu ainda nem toquei no seu passado… Porque, se a gente for mexer, talvez descubram que você não foi tão vítima assim quanto faz parecer.
Gil se aproximou, o rosto já transformado:
— O que você tá querendo insinuar?
Tentei intervir, levantando as mãos entre os dois:
— Gente, por favor... vamos parar com isso.
Mas Dinei não recuou. Olhou Gil nos olhos e soltou:
— Lá atrás teve aquele coroa que você nunca revelou quem era. Ficava com uma palhaçada… Só o fato de esconder já mostra que tinha algo estranho ali. E sobre o seu tio... será que você era abusado mesmo ou você deixava ser abusado?
Naquela hora, percebi que já não dava pra fazer mais nada. O silêncio ao redor foi imediato, pesado, como um soco seco no peito de todos ali. A linha tinha sido cruzada.
O impacto foi imediato. Gil travou. As mãos cerraram, mas ele não disse mais nada. O rosto dele endureceu, e por alguns segundos, parecia que faltava ar. O silêncio ao redor pesou.
Foi quando Jefferson se levantou com firmeza, colocando-se entre os dois, a voz firme e cortante:
— Chega! Isso passou de todos os limites. Dinei, cuida da tua vida e do teu relacionamento, que já tá um caos por si só. O que eu e o Gil temos é problema nosso. Não é da sua conta, e nunca foi. Portanto baixa a tua bola.
Dinei ficou mudo.
Jefferson então se virou pra Gil:
— E você também. Respira. Não vale a pena entrar na pilha dele.
Gil ainda tinha os olhos marejados, mas assentiu em silêncio, enquanto eu, ali do lado, não sabia como reagir. Felipe observava tudo, sem saber se intervinha ou ficava quieto, e Breno apenas passou a mão no rosto, cansado, como quem reconhece que aquilo já não tinha mais volta.
Breno, sem mudar o tom de voz, foi direto:
— Cala a boca, Dinei. Pelo amor de Deus. Só fica quieto.
A raiva que me consumia começava a se transformar em decepção. Eu respirei fundo, e antes de sair da piscina, olhei pra ele com firmeza:
— Olha o absurdo que você acabou de falar! Você acompanhou a história toda, Dinei. Sabe o quanto foi difícil pro Gil. E mesmo assim, tá usando isso contra ele? Ele é nosso amigo!
Você é um ingrato, Dinei. Quantas vezes eu te escutei, te defendi? E é assim que você me trata? Com piadinha barata na frente de todo mundo? Você quer machucar, e sabe como. O problema é seu, é interno.
Saí da piscina. Gil veio logo atrás, ainda fervendo de ódio. Jefferson também. Felipe ficou uns segundos parado, mas logo nos seguiu.
— Não escuta aquele idiota, Renato — Gil falou. — Você é muito mais do que aquilo que ele vomitou ali.
Jefferson colocou o braço ao redor do meu ombro e completou:
— Ele fala demais porque não tem o que calar.
Felipe, quieto, olhava pra trás. Dava pra ver que ele estava processando tudo aquilo, sem saber se sentia pena, raiva ou vergonha.
Quando voltamos pra mesa, o silêncio ainda pairava no ar como uma nuvem carregada prestes a desabar. Ninguém sabia direito como retomar o clima. Foi Dinei quem, com a voz baixa e hesitante, tentou quebrar o gelo:
— Renato… eu sei que passei do ponto. Me expressei mal.
Levantei os olhos e o interrompi, sem elevar a voz, mas com firmeza o bastante pra deixar claro que a paciência tinha chegado ao limite:
— Chega Dinei! você passou do ponto. Foi inconveniente. E, pra ser honesto, já vem sendo há um bom tempo. Mas como a gente tem uma amizade longa, eu fui engolindo, relevando, deixando passar. Só que hoje… não dá mais.
Ele desviou o olhar, calado.
— Eu sei que seu relacionamento passou por uma barra pesada, sei que não deve ser fácil lidar com tudo. Mas, seja o que for, não te dá o direito de sair destilando veneno em cima dos outros. Ultimamente, parece que você tá sempre pronto pra soltar uma alfinetada, sempre com esse humor carregado, ácido, provocador. E eu me pergunto: é frustração? É insegurança? É necessidade de diminuir os outros pra se sentir mais inteiro?
Deixei um silêncio preencher a mesa por alguns segundos. Depois continuei:
— Você sabe o quanto eu torço por você e pelo Breno. O quanto eu me importo. O quanto tentei ajudar. Mas a verdade é que chega uma hora que a gente acha que tá ajudando mas só tá tomando no cu. A partir de hoje, vou cuidar do meu. E quando eu sair daqui, vou repensar muita coisa sobre a nossa amizade.
O silêncio voltou com mais força ainda, denso como a água da piscina que ainda escorria do nosso corpo.
Jefferson ficou quieto por alguns segundos, olhando em volta como quem buscava uma saída que não fosse tão brusca. Suspirou fundo, se levantou devagar e falou, sem encarar ninguém diretamente:
— Gente... pra mim já deu. Vou embora.
O silêncio se instalou por um instante. O peso da decisão ficou no ar. Mas ele continuou, com calma:
— Vim pra relaxar, curtir... e desde cedo tô engolindo coisa atravessada. Então, com todo respeito, prefiro ir. Sem cena, sem estresse.
Começou a pegar suas coisas. Gil, sem disfarçar a irritação, se virou para Breno:
— Olha, não leva a mal, tá? Mas vê se dá pra ele voltar de ônibus com você. Hoje não dá pra voltarmos no mesmo carro. Sem clima. Que ele vá de ônibus, Uber, patinete... tanto faz. Só sei que perto de mim, agora, não rola.
— Ai, nem precisa disso! — reclamou Dinei.
Mas Breno foi direto, sem levantar a voz:
— Precisa. Ele só falou verdades. Porque, sinceramente, Dinei... por mim, você voltava sozinho. Só não deixo... porque ainda sou seu namorado.
Dinei abaixou a cabeça. Não disse uma palavra.
A volta foi silenciosa. Denso. Cheio de coisas que ninguém queria mais discutir.
No carro, Felipe soltou com um suspiro:
— E assim termina nosso passeio.
Mas Jefferson, talvez tentando salvar o resto do dia, fez um desvio inesperado e nos levou direto ao bar dele.
— Hoje o bar é só nosso. A gente não vai encerrar com esse climão.
Ele abriu as cervejas, ligou o som, e aos poucos a tensão foi cedendo lugar a um pouco mais de leveza. Não sem mágoas... mas com aquele alívio de quem sabe que, por enquanto, evitou algo pior.
Gil, ainda incomodado, tentou puxar o assunto:
— Olha, eu nem queria dizer nada, mas o Dinei...
Mas Jefferson o interrompeu, com firmeza:
— Gil, para com esse assunto. Sério. Você não colaborou em nada lá, sempre com esse ciúme infantil.
Fez uma pausa, respirou fundo e continuou, com o tom mais sereno, mas firme:
— Muita coisa foi dita, eu sei... e sim, são coisas que a gente precisa conversar. Mas entre nós dois, a sós. Em outro momento. Aqui não é o lugar, nem a hora. Você está com seus amigos. Curte o momento, depois a gente resolve o resto.
Gil murchou na hora. Sabia que Jefferson estava falando sério. Apenas assentiu em silêncio, engolindo a vontade de continuar o assunto.
Aos poucos, o clima foi voltando ao normal. Ficamos ali no bar, cercados pelas luzes amareladas e pelo som ambiente, compartilhando histórias da vida.
Felipe contou um pouco do rolo dele — sempre confuso, cheio de idas e vindas —, e eu aproveitei pra falar da ida inesperada do Manuel na empresa, o que causou espanto geral.
— O quê? — reagiu Jefferson, quase engasgando com o salgadinho que disponibilizou com aperitivo. — Ele apareceu mesmo?
— Do nada — confirmei, rindo. — Chegou quebrando a porta derrubando o monitor. Me deu um susto.
Gil ouvia tudo, dava suas opiniões aqui e ali, mas ainda meio emburrado. Não estava sendo grosso, só estava digerindo tudo. Mesmo assim, ficou. Sentado ali com a gente. O que, no fundo, já era um sinal de que ele queria — e precisava — estar ali.
A noite foi seguindo entre uma cerveja e outra até que Felipe olhou para o relógio, esticou os braços e anunciou:
— Gente... eu vou nessa.
Aproveitei a deixa, me levantei também.
— Vou junto. Melhor encerrar por aqui.
Fui me despedindo dos outros e, por fim, me aproximei de Jefferson. Dei um abraço apertado nele e, antes de soltá-lo, falei em tom baixo, só pra ele ouvir:
— Pega leve com o Gil, tá? Ele pode ser complicado, mas sente muito.
Jefferson retribuiu o abraço com um sorriso tranquilo:
— Fica tranquilo. Não vai ser briga, só uma conversa. É o que a gente tá precisando faz tempo.
Assenti com um leve sorriso, e logo saímos, deixando o bar pra trás com aquela sensação estranha de encerramento e recomeço ao mesmo tempo.
Enquanto caminhávamos em direção ao ponto de ônibus, olhei pro lado e perguntei:
— Ei... quer rachar um Uber?
— Bora — respondeu Felipe, ajeitando a bolsa no ombro. — Melhor que ficar plantado nesse ponto esperando eternamente.
Peguei o celular e fui abrindo o aplicativo.
— Me passa teu endereço.
Enquanto eu digitava, ele soltou:
— Se o Naldo não estivesse tão ocupado com o Manuel, eu até ligava pra ele. Ele com certeza viria me buscar.
Virei pra ele, rindo, mas duvidando:
— Duvido.
— Sério. Ele já fez isso antes — disse, como quem tem certeza do que fala.
— E a mulher dele? — perguntei, arqueando a sobrancelha. — Depois de tantas traições… ainda tá com ele?
Felipe riu e balançou a cabeça.
— Na visão dela é aquela coisa: ele compensa. Tanto financeiramente quanto na cama. Você acha que ela está tá ali por amor? Ela já engoliu coisa muito pior. No fundo... ela se acostumou. Tem mulher que prefere ficar com o "problema" do que começar tudo do zero.
— Então aceitou ser corna?
— No mínimo. Ali há um acordo, segundo ele mesmo já falou... Nada falta para ela, inclusive chifres. Cada um com suas prioridades, né?
Enquanto o carro não chegava, Felipe olhou pra mim com aquele sorrisinho maroto no canto da boca.
— Duvida ainda? Quer ver?
— Duvido mesmo — provoquei, cruzando os braços.
Sem pensar duas vezes, ele tirou o celular do bolso e fez a ligação. Colocou no viva-voz pra não perder nenhum detalhe. Depois de alguns toques, a voz conhecida atendeu:
— Fala, Felipe! O que manda?
— Tô te ligando pra ver se pode me pegar aqui.
Naldo soltou uma risadinha abafada.
— Tu esqueceu que eu tô ocupado agora, né? Te contei, pô.
Do fundo, a voz de Manuel apareceu, meio abafada, mas ainda audível:
— Chama ele pra cá, Naldo!
Felipe segurou o riso e continuou o teatrinho:
— É mesmo! Foi mal, acabei esquecendo.
Naldo então, com a maior naturalidade do mundo:
— Agora só se você topar vir pra cá fazer uma festinha com a gente. Aí eu te busco.
Felipe deu uma olhada rápida pra mim e respondeu:
— Não, pode deixar. Vou pedir um Uber aqui. Vou ter que desligar, o Renato tá vindo.
— Fechou — respondeu Naldo. — Qualquer coisa, chama.
Felipe desligou a chamada e me encarou com aquele ar vitorioso, inclinado pra trás como se tivesse acabado de vencer uma aposta.
— E agora? Acredita?
Fiquei de boca aberta por alguns segundos, ainda processando tudo o que tinha ouvido. Depois, com um riso desacreditado, respondi:
— Retiro o que eu disse…
Enquanto o aplicativo avisava que o motorista estava a caminho, com o carro já se aproximando na esquina, comentei ainda meio atônito:
— Eu só tô chocado. Porque, sinceramente... ele nunca foi assim. Eu desconhecia esse lado do Naldo. Pra mim era sempre você que corria atrás. Tanto que, naquele dia lá no sítio, ele falou que você que estava querendo transar com ele. Lembra?
Felipe riu, mas sem desviar o olhar da tela do celular.
— Lembro. E é verdade, lá eu pedi mesmo. Não vou negar. Mas, Renato... ele pode até me achar bobo, mas eu ganho os dois com sexo. Eles podem pensar que eu sou um otário, mas te garanto: eu tenho os dois. Não cem por cento, mas o suficiente pra saber que eles jogam o meu jogo — disse, com aquele ar de quem já entendeu as regras há muito tempo.
Nesse momento, o carro encostou.
Entramos e seguimos viagem em silêncio por alguns minutos, só o som do carro e o cansaço batendo. E eu, ali do lado, só pensava: com esse Felipe, até uma simples conversa rende mais que série da Netflix.
O motorista anunciou a primeira parada.
— É aqui que eu desço — avisei, soltando o cinto.
Antes que eu saísse, Felipe me puxou pelo braço levemente, com um sorriso sincero:
— Obrigado por ter me chamado, de verdade. Me chama da próxima vez também, viu?
— Pode deixar, sem dúvidas — respondi. — E desculpa pelas tretas, viu?
Ele fez cara séria por um segundo, mas logo soltou, debochado:
— Eu fui pelas tretas!
Depois deu uma risadinha e sinalizou com a mão:
— Tô zoando... mas sério, valeu mesmo.
Entro em casa e o silêncio me recebe. Vou direto pra cozinha, caçar alguma coisa pra comer. Abro a geladeira, pego o refrigerante e coloco um pouco no copo. Do armário, tiro um pacote de biscoito recheado e subo pro meu quarto.
Ligo a TV, mas nem presto muita atenção. Fico dividindo meu foco entre a tela e o celular enquanto lancho.
Quando abro o Instagram... quase caio pra trás.
A foto que postei lá no resort tá bombando. As notificações são muitas e a curtidas também — Naldo, Daniel, Thiagão, Ricardo, Anderson, Letícia, meus amigos… geral aparece.
Mas o melhor — e talvez o pior — tá na DM.
Thiagão, direto como sempre:
“Rabo gostoso! Quero meter nele de novo.”
Daniel, escandalizado:
“Caralho, véi! Faz isso não.”
E Anderson…
😔 “O que eu tenho pra te dizer é que acho que realmente perdi você.”
Termino meu lanche com o coração meio dividido. Por um lado, fico todo bobo com tanta curtida, com tanta gente reagindo. Por outro... aquela última mensagem do Anderson pesa.
Decido responder ao Anderson. Porque, se não fizesse isso, sei que passaria a noite me remoendo, com mil pensamentos na cabeça.
Escrevo com calma, tentando encontrar as palavras certas, mesmo que nenhuma pareça suficiente:
"Anderson, eu não tenho mais você. E você também não me tem. Mas isso não significa que eu não te ame. Porque eu amo. Só que amar não tem sido suficiente. E mais uma coisa: a sua verdade… ela não é uma verdade absoluta. Ela é a sua versão dos fatos. E só isso.”
É estranho ter gente me desejando... e, ao mesmo tempo, me sentindo tão longe de alguém que já foi tudo.
A semana começa com um pequeno B.O no trabalho. Aquele funcionários que faltou na sexta, mesmo tendo apresentado um atestado, se recusa a ir à medicina do trabalho para homologação. Percebo que ele tá testando a minha paciência e, sem muita enrolação, digo que se não for, vai levar advertência. Ele retruca, dizendo que o Pedro jamais faria isso.
— Isso é o que vamos ver — respondo, já pegando o celular.
Ligo pro Pedro ali mesmo, na frente dele. Explico toda a situação, inclusive o fato de o funcionário ter ligado para Luana na sexta indignado, só porque pedi que levasse o atestado para homologar. Pedro escuta tudo em silêncio e, no fim, diz apenas:
— Me passa pra ele.
Entrego o telefone:
— Pedro quer falar com você.
Não sei o que Pedro disse, só sei que, ao encerrar a ligação, o funcionário me olha e pede:
— Pode me dar a via, vou lá agora.
Encaminho direto pra Luana, que é quem deve cuidar disso. A função é dela.
No fim do expediente, sigo pra faculdade. Desde aquela sexta tensa, o clima por lá melhorou. A turma já interage mais comigo e com a Drielle. Já não ficamos tão isolados nos cantos, como antes.
Mas é numa quarta-feira que tudo desanda.
Estou a caminho da faculdade quando recebo uma ligação de Breno. Ele está aos prantos:
— Aquele desgraçado mentiu!
— Não tô entendendo — respondo, já ficando em alerta.
— Dinei me traiu, Renato... aquele desgraçado mentiu pra mim!
Sinto o baque na hora. Meu coração dispara.
— Onde você tá agora?
— Tô na Vila... perto da praça Brasil.
— Me espera aí. Tô indo pra te encontrar.
Mando uma mensagem rápida pra Drielle avisando que não vou pra aula e peço desculpas. Em seguida, chamo um Uber e sigo direto pra praça Brasil.
Ao chegar, vejo Breno sentado em um dos bancos. Ele tá desolado. Olhos vermelhos, a respiração pesada, olhando pro celular como se buscasse uma explicação que não vem.
Quando me aproximo, ele se levanta e me abraça. E dessa vez... ele desaba de vez. Fico ali com ele, abraçado, fazendo carinho em suas costas enquanto várias pessoas passam por nós, tentando entender o motivo daquele choro.
Ele se solta aos poucos. Seus olhos ainda cheios de dor. Olho firme pra ele e digo com calma:
— Agora respira... e me conta o que tá acontecendo.
Ele tenta falar, mas mal consegue. A garganta trava, os olhos vermelhos, a respiração curta. Cada palavra sai entre soluços e pausas longas, como se apenas lembrar do que aconteceu já o machucasse outra vez. Mesmo assim, ele tenta se explicar, num esforço quase desesperado:
— Renato... ele me traiu. Aquele desgraçado me traiu.
— Calma, respira. Como assim?
— Ele topou gravar um vídeo... um conteúdo... com aquele cara que tinha chamado ele pra fazer parceria. Lembra? Aquele cara.
Fico em choque. Aquilo que sempre pareceu uma possibilidade distante — quase uma paranoia — se concretiza ali, na minha frente, com a voz embargada de Breno servindo como prova.
— Mesmo depois de tudo que a gente conversou, depois de eu ter aberto mão de tanta coisa, ele me apronta uma dessas.
A dor nos olhos de Breno era nítida. E não era só raiva, era uma mistura cruel de frustração e decepção. Ele não chorava só porque foi traído. Ele chorava porque acreditava. Porque confiava.
— Mas como você descobriu isso? — pergunto, com o estômago revirando.
— Porque ele é burro! — diz, limpando as lágrimas com o dorso da mão. — Ele pode até não ter postado na rede dele, mas o outro postou. Dinei tá com o rosto desfocado, mas... eu conheço ele, Renato. Conheço cada detalhe do corpo dele. Cada marca, o jeito que ele geme... era ele. Era o meu namorado naquele vídeo. Com outro.
Fico em silêncio, processando tudo. Ele percebe e reforça:
— Quer ver? Tá aqui. — Pega o celular com mãos trêmulas e coloca o vídeo. — Olha isso!
Assisto por poucos segundos. E sim… é praticamente inegável. O jeito a voz. Tudo aponta pra Dinei.
— E você... falou com ele?
— Não só falei. Eu mandei o vídeo pra ele! Baixei e joguei na cara. Desde então ele não para de me ligar, já mandou áudio, mensagem... Mas eu me recuso a ouvir. Não quero escutar desculpas. Eu tô com muita raiva dele, Renato. Muita!
Enquanto ele termina de falar, o celular toca. Ele vira a tela e me mostra: Amor chamando.
— Eu não vou atender — diz, com os olhos marejados, cravados na tela como se aquilo pudesse apagar a dor. — Me recuso.
Tento mudar o foco. Ele precisa respirar, sair daquele estado.
— Vamos ali no shopping, vai. Lava o rosto, come alguma coisa. A gente senta numa lanchonete qualquer, porque olha... eu tô no rango também.
Ele concorda com um aceno leve de cabeça. Seguimos andando, e no meio do caminho, ainda frágil, ele solta:
— Renato... você acha que eu fui um péssimo namorado? Você acha que a culpa foi minha? Que eu falhei?
Paro e olho firme pra ele:
— Não, Breno. Você não falhou. Você foi um ótimo namorado. O que acontece é que o Dinei tá encantado por esse mundo de exposição. Parece viciado em atenção, em validação. E o problema não é você, entende? É ele.
— E justo agora, que a gente estava pensando em morar juntos...
A voz dele quebra no fim da frase. Ele baixa a cabeça, como se estivesse tentando engolir o próprio coração partido. E ali, vendo sua vulnerabilidade exposta, confesso que até eu começo a sentir raiva de Dinei.
— Amigo… talvez isso tudo seja um livramento. Um sinal claro de que não era pra vocês ficarem juntos. De que você merece algo melhor.
— Gil tinha razão aquele dia, né? Eu sou um besta...
O celular dele toca de novo. Dinei.
— Por que você não manda uma mensagem pra ele? Diz que não quer falar agora — sugiro.
— Não, não quero. Nem isso. Não quero dar abertura nenhuma.
Já estamos sentados, com o lanche sobre a mesa. Ele brinca com a batata frita, sem fome real, só tentando se distrair. Até que, com um suspiro fundo, me pergunta:
— E agora? O que eu faço?
Penso por alguns segundos e digo com sinceridade:
— Isso é algo que só você pode responder. Mas o que eu sei é que você precisa seguir. Com ou sem Dinei. E se for sem, você vai conseguir. A dor passa. Aos poucos a gente se acostuma com a ausência.
— Mas é isso que me assusta. Me acostumar. Eu já não sei mais como é a vida sem ele.
Olho pra ele, seguro seu braço com carinho e digo:
— Eu entendo. Porque eu já vivi isso. Com meu primo, lembra? No começo é insuportável. Mas a gente se adapta. A ausência dói, mas ela educa. Ensina.
O telefone toca de novo. Ele me entrega e diz, exausto:
— Atende você, por favor.
Atendo. Fico em silêncio.
— Breno? Amor?
— Não. Aqui é o Renato.
— Ah... que bom que você tá com ele. Como ele tá?
— Como você acha que ele tá, Dinei? Ele tá arrasado. Você destruiu ele hoje. E se ainda tiver um pingo de consideração por ele — e olha, agora eu já começo a duvidar que tenha — faz um favor: deixa ele em paz. Hoje ele foi bombardeado de informação, de dor, de vergonha. Ele não quer conversar. Respeita isso.
— Renato... fala pra ele que eu preciso falar com ele. Só um minuto…
Antes que eu diga algo, Breno grita do outro lado da mesa:
— Fala pra esse viado que se continuar insistindo eu vou bloquear ele de tudo!
Volto pro telefone:
— Você ouviu, né? Se continuar insistindo, ele vai te bloquear em tudo. Então se toca, Dinei. A sua chance, você jogou fora.
Desligo.
Breno apenas me olha, com os olhos ainda marejados, mas agora... um pouco mais calmos.
Fico ali, ouvindo ele desabafar com o coração despedaçado. E, no silêncio entre uma lágrima e outra, me vem um pensamento difícil de ignorar: por que algumas pessoas brincam de amar? Brincam com os sentimentos dos outros como se fossem descartáveis?
Porque, pra mim, era isso. Dinei brincou com Breno. Pode até ter amado em algum momento, mas nas últimas semanas... não. Ele sabia exatamente o quanto aquilo doía no Breno. Sabia que, se topasse aquela parceria, seria o fim. E mesmo assim, foi. Como se não tivesse havido promessas, como se as conversas, os planos, as noites divididas fossem apenas palavras jogadas ao vento.
Ele não pensou em Breno. Não pensou em nada além de si mesmo. E se pensou, não deu a mínima.
E é aí que me dou conta: Dinei, no fim das contas, não é tão diferente de Manuel. Quanto mais, melhor. Mesmo que isso custe o coração de alguém.
Me viro pra Breno, ainda imerso nesse pensamento, e pergunto com cuidado:
— Quer dar uma volta? Fazer mais alguma coisa? A gente pode caminhar, tomar um sorvete, sei lá...
Ele balança a cabeça com um sorriso fraco. Está abatido, mas bem melhor do que quando o encontrei naquela praça.
— Na verdade, não. Só quero agradecer, de verdade. Sei que você é amigo dele e tudo... mas você foi a única pessoa que me veio à cabeça. Eu não sabia pra onde correr, e pensei em você.
Ele se levanta devagar, com o peso da noite nos ombros. Me abraça apertado, e ali no meu ombro ele suspira fundo, como quem finalmente consegue respirar.
— Obrigado, Renato.
— Não precisa agradecer. Somos amigos. O fato de você ter me conhecido por causa do Dinei não significa que nossa amizade termina com ele.
Ele sorri de leve, meio sem forças, mas sincero.
— Acho melhor irmos. Minha cabeça tá doendo, e tudo que eu quero agora é uma cama... embora eu ache impossível pregar o olho essa noite.
Fico ali com ele até o carro do Uber chegar. Ele adiciona uma parada no meu endereço e seguimos em silêncio, um daqueles silêncios que dizem muito mais do que qualquer conversa.
Quando o carro encosta na porta da minha casa, ele me olha de lado.
— Obrigado... de novo.
— Se cuida! Me liga se precisar. Mesmo. A qualquer hora.
Desço do carro e o vejo partir, com a cabeça encostada no vidro, o olhar perdido na noite da cidade.
Entro em casa com uma sensação de impotência. Ver o Breno naquela condição me abalou mais do que eu esperava. Triste, abatido, despedaçado por alguém que dizia amá-lo. Subo direto pro quarto, tentando afastar aquele peso do peito. Pego o celular e mando uma mensagem:
“Chegou bem?”
A resposta vem logo:
“Sim. Vou tentar dormir depois desse dia difícil.”
Respiro fundo. Aquilo tudo ainda tá martelando na minha cabeça. Gil precisa saber. Nós três sempre fomos próximos — eu, ele e Dinei. É o mínimo contar pra ele antes que o assunto chegue distorcido.
Disco o número. Ele atende rápido:
— Renato? Tá tudo bem? Aconteceu alguma coisa?
— Gil... você não vai acreditar no que aconteceu!
— Ai, meu Deus. Já até me arrepiei. Fala logo!
— O Breno descobriu que o Dinei traiu ele. No fim das contas, o Dinei topou sair com aquele cara... aquele da tal “parceria”.
Silêncio. Até que Gil explode:
— Que viado baixo... que sujo! Renato, sinceramente? Eu sempre tive um pé atrás com essa história. Sempre! Mas a gente torce pra estar errado, né? Que ódio!
— O Breno tá destruído, Gil. Ele me ligou chorando, fui encontrar com ele na praça Brasil. Tava acabado. De um jeito que eu nunca tinha visto.
— Fez muito bem em ir. Nessas horas, é que se vê quem é amigo. Agora, o Dinei... meu Deus, o que ele tem na cabeça? Que prazer é esse em se sabotar, em machucar quem tá do lado?
— Ele ligou várias vezes enquanto eu estava com o Breno. Mandou áudio, mandou mensagem... mas o Breno não quis ouvir nada. Disse que acabou.
— E tá certo! Espero que ele mantenha essa postura. Porque se der brecha, o Dinei vai voltar com aquele papinho de puta arrependida. E olha... só porque eu sou amigo dele há anos, não quer dizer que vou passar pano. Errou, agora aguenta.
— Eu só te liguei pra te contar mesmo. Achei que você devia saber. Não comenta nada pra eles. Espera eles te contarem. Aí você se posiciona.
— E eu agradeço. Mas ó, o Jefferson precisa saber disso também. Eu vou contar só pra ele
— Tá bom, Gil.
— Qualquer coisa me chama. E se o Breno precisar... é só falar. Tô aqui.
— Boa noite, Gil.
— Boa noite, Renato.
No dia seguinte, assim que chego na empresa, começo a conversar com a Luana sobre as novidades. Estamos ali, distraídos, quando Pedro aparece do nada, rindo como se tivesse escutado alguma piada interna.
— Ué? — digo, surpreso. — O seu retorno não era só na segunda?
Ele dá um sorriso tranquilo e responde:
— É sim. Ainda tô de férias. Mas voltei pra VR mais cedo, tinha umas pendências na cidade pra resolver… e aproveitei pra passar aqui só pra ver como estão as coisas.
Luana, num reflexo rápido, pega o copo e começa a se levantar, mas ele logo diz:
— Fiquem de boa, só vim dar um oi mesmo.
Ele pega um café e se junta a nós, com aquele ar leve de quem ainda está oficialmente de folga.
— Lu, você pode ficar responsável pela empresa amanhã?
— Posso sim — ela responde sem hesitar.
Ele então se vira pra mim com um sorriso de quem vem com notícia boa:
— Renato, você vai tirar uma folga nesse sábado.
— Oba! Nem queria mesmo — digo sem disfarçar a empolgação.
— E no outro sábado, é a Lu que folga — completou, olhando de novo pra ela.
Depois pediu pra eu mostrar o estrago na porta. Quando viu, fez uma careta e disse:
— Assim que sair daqui, vou comprar uma nova. Mas só vão conseguir instalar na segunda, tá?
Assenti, e antes mesmo que a gente tocasse no assunto do monitor, ele já foi direto:
— Ah, e o monitor... segunda-feira já tem outro aí. E não se preocupem, o Manuel vai mandar o Pix.
— Ele aceitou de boa? — pergunto, curioso.
Pedro soltou um riso meio cético.
— Tentou enrolar, né? Disse que estava apertado, que ia ver... Mas eu fui direto: dessa vez não ia deixar passar batido.
Antes de ir embora, ainda passou por todas as mesas, conversando com cada um da equipe, fazendo piada aqui, elogiando ali — daquele jeito bem Pedro.
Na faculdade, pela primeira vez, Drielle não apareceu. E foi aí que entendi exatamente o que ela queria dizer quando dizia que, quando eu faltava, ela se sentia como um peixe fora d'água. Porque era assim que eu me sentia ali. Por mais que Erick e os outros puxassem papo, não era nem de longe a mesma coisa. O lugar era o mesmo, mas o clima... completamente diferente.
Depois da aula, como de costume, o pessoal combinou de ir ao bar karaokê. Fui convidado a chegar junto, mas antes que eu aceitasse, Erick se aproximou com uma proposta diferente:
— Topa ir lanchar e bater um papo?
Aceitei de imediato. Pedi desculpas ao resto do grupo e fui com ele.
Fomos a uma lanchonete especializada em hot dogs gourmet — ambiente aconchegante, luz baixa, cheiro bom no ar. Depois de fazer nossos pedidos, a conversa deslanchou.
Erick acabou se abrindo. Contou que foi expulso de casa ainda jovem, depois de assumir quem era. Passou um tempo morando com a tia, que o acolheu de braços abertos, mesmo sob pressão dos pais dele, que insistiam que ela estava “reforçando o erro”. Apesar disso, ela nunca cortou contato com ele. E isso, segundo ele, foi o que mais marcou.
— Foi quando percebi que família não é quem te cria — é quem te sustenta quando o mundo te vira as costas — disse com firmeza.
Contou que é muito grato a essa tia, e que a ajuda sempre que pode. Além dela, disse que tem alguns amigos de longa data que considera família de verdade. Gente que ficou do lado dele quando mais precisou.
— Depois que saí da casa da minha tia, comecei a me virar. Arrumei um emprego, depois outro. Já passei por várias empresas, já morei em muitos lugares, bairros diferentes... — continuou. — Nunca foi fácil, mas aos poucos fui achando meu canto. Hoje tô mais estável, sabe? Mais em paz.
Fiquei tocado com o que ouvi. E acabei dividindo um pouco da minha própria história.
Resumi minha descoberta, os primeiros conflitos, mas frisei que o momento mais cruel foi quando minha família descobriu meu relacionamento com meu primo. Isso, por si só, já foi um choque enorme pra eles. Mas o baque maior veio depois, quando souberam que tanto eu quanto ele fazíamos parte de um triângulo amoroso com outro cara — o Manuel. A partir daí, as coisas desandaram de vez. Meu irmão e minha prima não só não aceitaram, como assumiram um discurso reacionário, cruel mesmo.
Erick me olhou com um misto de surpresa e empatia.
— E hoje... você namora?
— Não, tô solteiro — respondi.
Ele foi respondendo sem eu perguntar:
— Eu tô meio enrolado. Tem uma pessoa com quem eu vou e volto. Agora a gente tá afastado, então... sei lá.
Em seguida, ele perguntou:
— Você já foi naquela boate gay?
— Já sim, mas faz um tempinho que não vou.
— Bora um dia desses?
Assenti com um sorriso, achando legal o convite. Depois, ele perguntou, meio tímido:
— Você se importaria se eu tirasse uma selfie nossa?
— Claro que não — respondi.
Ele tirou a foto, e eu pedi pra ele me mandar. Trocamos WhatsApp e começamos a nos seguir no Instagram. Pouco depois, ele postou a selfie com a legenda: Colega da faculdade.
Compartilhei nos meus stories também. A noite com Erick naquela lanchonete foi leve, do jeito que eu gosto — sem música alta, com espaço pra conversa e troca de verdade.
Quando decidimos ir embora, fomos caminhando juntos até a frente da lanchonete. Me despedi, mas ele disse:
— Eu te levo em casa.
— Ah, não precisa, de boa — respondi, achando que ele ia chamar um Uber ou coisa assim.
Mas, para minha surpresa, ele entrou no estacionamento ali perto. Desativou o alarme e entrou em um carro escuro e discreto.
Fiquei meio sem graça, mas entrei.
No caminho, o papo foi leve: falamos sobre divas pop — Beyoncé, Lady Gaga, Anitta, Pabllo. Rimos, trocamos opiniões, e fui dando as coordenadas e quando dei por mim, já estávamos chegando.
E eu ali, com a sensação boa de ter conhecido ele mais a fundo que não só tinha história, mas que, de algum modo, me tocou também.
Quando Erick estacionou perto de casa, me virei pra ele e agradeci pela companhia.
— Foi massa, viu? — falei com sinceridade.
— Também curti — ele respondeu com aquele sorriso leve. — Vamos repetir.
— Vamos sim.
Me despedi, e ele esperou eu entrar no portão antes de dar partida.
Já dentro de casa, fui direto pra sala. Nem jantei — o hot dog gourmet com batata frita já tinha dado conta do recado. Me joguei no sofá, onde meus pais assistiam TV. Me juntei a eles, e ficamos ali, conversando um pouco, como há tempos não fazíamos.
Comentei que a faculdade estava me fazendo bem. Disse que estava conhecendo pessoas maneiras, que meu círculo social estava crescendo, e que isso me ajudava muito a me sentir mais eu mesmo. Minha mãe sorriu de canto, orgulhosa. Meu pai também assentiu, com aquele jeito dele de demonstrar apoio sem dizer muita coisa.
Peguei o celular, e foi quando vi: uma mensagem de Dinei. A primeira desde toda aquela confusão.
"Breno me bloqueou de tudo."
Respirei fundo. Pensei por um instante e decidi ser sincero.
"Dinei... tá tudo tão recente. O Breno tá machucado. Dá um tempo pra ele. Só isso."
Sem mais, desejei boa noite pros meus pais e fui pro quarto.
Passei um tempo assistindo série, tentando desligar a cabeça. Aos poucos, os olhos começaram a pesar… até que adormeci.
No sábado, acordei por volta de meio-dia. Tomei um banho tranquilo, coloquei uma roupa apresentável e desci.
Ao começar a descer a escada, percebi que tínhamos visita. Ricardo e Letícia estavam ali, sentados na sala, conversando com meus pais.
Enquanto descia, soltei em tom leve de deboche:
— Olha quem apareceu! E nem foi preciso mandar mensagem, viu, mãe?
Minha mãe riu sem graça, disfarçando, mexendo no celular como se não tivesse escutado direito. Mas Ricardo respondeu na hora:
— Pô, mas eu sempre mando mensagem pra eles, ligo…
Rebati, direto:
— Não é o suficiente. Minha mãe mesmo, essa semana, reclamou. Disse que parece que você não tem mais pais.
Minha mãe riu sem graça, disfarçando, mexendo no celular como se não tivesse escutado direito.
Mas Ricardo, Letícia e até meus pais trocaram olhares entre si — rápidos, sutis, como se buscassem um sinal silencioso de que era hora de ir adiante com o que realmente os trouxera ali.
Ricardo se virou pra mim:
— Tudo bem, Renato?
— Sim, tudo bem — respondi.
Mas ele insistiu, com um olhar firme, que parecia buscar algo que eu não tinha dito:
— Tá tudo bem mesmo?
Respirei fundo. Tentei manter a pose.
— Sim. Por quê? Não deveria estar?
Foi Letícia quem entrou na conversa:
— Você viu alguma coisa... nas redes sociais? Algum status?
— Não — respondi, mas automaticamente puxei o celular, como se meu corpo soubesse o que minha mente ainda não queria aceitar.
Abri o WhatsApp e comecei a passar pelos status. Despretensiosamente no início, até que um nome saltou: Anderson. Cliquei.
Era ele, sorrindo... abraçado com uma garota. A legenda era um simples coração.
Um aperto me atravessou no meio do peito. Meu coração acelerou. Uma parte de mim tentou racionalizar, dizer que podia ser só uma amiga, que talvez fosse uma prima, uma colega, qualquer coisa... até deslizar o dedo e ver o próximo status.
Anderson beijava a garota.
Fiquei paralisado. Era como se o chão tivesse sumido debaixo de mim.
O celular ainda na mão, mas os olhos perdidos. Um silêncio surdo se instalou por dentro. Senti o sangue esquentar, depois esfriar. Meu estômago virou, minha respiração ficou curta. Era uma dor estranha, silenciosa, mas que queimava.
Doía.
Doía porque, no fundo, eu ainda acreditava que a gente voltaria.
Doía porque uma parte de mim se agarrava à ideia de que tudo aquilo era só uma fase, um afastamento momentâneo.
Doía porque eu não queria acreditar no que estava vendo. Porque ver era aceitar. E aceitar era perder.
Fechei os olhos por alguns segundos, tentando conter o que estava prestes a transbordar. E foi aí que tudo fez sentido.
A visita inesperada de meu irmão e cunhada. As perguntas disfarçadas de preocupação. Eles sabiam. Vieram por mim.
Mas naquele momento, eu não queria consolo. Nem conversa. Nem drama. Só queria sair dali.
Respirei fundo, engoli a dor como quem engole vidro e, sem olhar pra ninguém, disse:
— Vou subir um pouco. Já volto.
Sem esperar resposta, subi.
Entrei no quarto, fechei a porta com calma, mas por dentro eu tremia. Joguei o celular na cama, mas fiquei ali parado por alguns segundos. Era como se a imagem ainda estivesse cravada nos meus olhos. Aquela cena, aquele beijo, o sorriso dele. Como se nada tivesse acontecido, como se eu nunca tivesse existido.
Sentei na beira da cama e encarei o aparelho. Respirei fundo, peguei o celular de novo — e mesmo sabendo que isso só aumentaria a dor, abri o status mais uma vez.
Ele ali. Com ela. De novo.
Eu não sabia exatamente o que pensar. Só sei que a indignação falou mais alto. A mágoa, o nó na garganta... e o orgulho ferido.
No impulso, com o dedo firme, comentei o status:
"Olha... pra quem estava com tanto medo de me perder, parece que encontrou alguém. Irônico, né?Fico feliz que você tenha superado tão rápido. Isso facilita as coisas pra mim também."
Enviei. Sem revisar. Sem apagar. Sem me proteger.
Coloco meu celular no criado mudo e encostei a deito na cama . Uma parte de mim queria que ele visse e sentisse alguma coisa. Outra parte só queria que ele sumisse de uma vez.
Mas acima de tudo, o que eu mais queria... era não estar sentindo nada daquilo.
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Comentários (2)
Lipe: Genteeee, pelo amor, não consigo mais sobreviver sem essa história. Muito bom, que ódio do Dinei e Agra do Anderson Grrrrrr! Conto perfeito como sempre, ansioso pelo próximo
Responder↴ • uid:on96155v9dAlison: Eita Anderson fazendo merda de novo Ansiossimo pro próximo capítulo
Responder↴ • uid:40voci0lm9k